quinta-feira, 18 de abril de 2019

Capítulo 2: “Peixes no Aquário e o Fenômeno Climático”




A única coisa que conseguia distinguir era a finalidade do local; uma espécie de cemitério, antigo e bem tradicional. Podia ouvir pessoas sussurrando nas proximidades. A ausência de luz e a espessa camada de névoa embaçavam minha visão, mas podia ver 2 ou 3 m a frente graças a luminária lunar. Sentia uma inquietação ao redor, vários corpos se locomovendo caoticamente, como se bailassem uns com os outros. Mas minhas retinas oculares não captavam nenhum movimento, somente a incerteza da escuridão.

Foi quando um vulto desacoplou-se das trevas e se esgueirou até mim. A Lua ilumina o que me parecia ser um cão, de pelagem suja e surrada, usando uma máscara de ferro, projetada sobre medida para sua cabeça. A máscara não possuía nenhum orifício, nem para olhar ou respirar ou alimentar ou quer que seja, e parecia estar parafusada em seu pescoço. O animal - ou qualquer que fora sua definição biológica - me encarou com sua face metálica e enferrujada por alguns estantes, e depois latiu; um latido que mais parecia uma lamúria metalizada, como se suas cordas vogais se contorcessem e ele engasgasse com o próprio gruído. Apesar da falta de cortesia do cachorro, aquilo me pareceu uma tentativa de comunicação. Logo após, o cão deu meia-volta e retornou para a penumbra.


Base da Legião da Esperança (L.E.) - Dormitório masculino (2º andar) - 05h28min - 22/06/2012 (BL)
Acordo com um som agudo e animalesco no meu ouvido. O maldito galo - inconfundivelmente, a ave da granja do Nicholas - cantarolava suas noções básicas de melodia novamente; celebrando outro nascer do Sol com sua voz desafinada. O mesmo ritual executado com precisão horária toda bendita manhã - como se houvesse algo para se comemorar no começo de cada dia. Tenho vontade de lançá-lo além dos muros, ai sim o cretino ia ter um motivo pra cantar. Bom, pensando bem, talvez o pássaro terrestre esteja certo, e eu também deveria agradecer por estar vivo. Às vezes imagino se habitar a pós-humanidade não passe de um ato de sorte, como jogar dados ao acaso. E com certeza é muito melhor acordar com o "cocoricó" do que com o despertador oficial - soado daqui exatos 30 minutos - que mais parece um alarme de incêndio. Tudo bem, eu aceito a existência do galo.

Eu sei, o sonho foi muito estranho, mas tais visões se tornaram tão freqüentes que deixei de dar importância. Deve ser apenas uma loucura colateral decorrente de viver neste inferno - como Deus não conseguiu matar todos nós no dia do Juízo Final, inventou de atacar nossas mentes, para nos induzir a terminar seu trabalho. He he, espero nunca soltar esses pensamentos perto do padre, não agüento mais ouvir sermão. Sabe como é, a gente se torna verdadeiros exemplos de religiosidade em tempos de crise, mas depois de rezar até ficar rouco e nada mudar, nenhum vento de salvação surgir pelas linhas do horizonte, perdemos um pouco da fé. É o estado de ceticismo - quando você não acredita mais em nada - e te digo, pobre coitado de quem terminar assim - como eu. Disposição e vontade de viver são essenciais para a sobrevivência; essa é uma das funções da religião, manter as pessoas animadas. Exatamente por isso que criaram as crenças, para nos manter alegres e podermos nos auto-trucidar com mais eficiência. Droga, espero que o padre nunca ouça isso.

Isaac: Nathanael, você está acordado?

Desvio o olhar do teto para encarar Isaac. Ele estava jogando grãos de ração no aquário, alimentando seus amados peixes.

Isaac: Notei sua inquietação ai na cama.

Isaac era guarda rodoviário antes de tudo isso; ele conhece a cidade de ponta-a-ponta e ao avesso. Nunca o vejo acordar tarde, e às vezes penso se ele realmente dorme de noite. Por esta razão nós formamos a E.B.M. (Equipe de Busca e Mantimentos), porque acordamos cedo. Bem cedo, antes de todo o resto da L.E.; e a busca por mantimentos não tem hora. O povo sempre precisa de alguma coisa; os outros setores - desde o Centro Médico até a Geração de Energia - ficam em coma sem nossos serviços. Donatello, nosso indispensável mecânico, deve estar na capela orando por sua família, e Thomas, ex-funcionário da Vigilância Sanitária, tragando um cigarro em algum lugar. Acredito que, no requisito insônia, apenas os companheiros da Equipe de Vigia e Defesa ganham de nós, mas isso é outra história.

Nathanel: Não se preocupe, eu estava prestes a voltar a dormir.

Isaac: O.K., mas a Maria quer falar com você...

Maria!!? O que ela quer comigo agora? Da última vez que conversei com ela eu quase morri em uma infestação...

Nathanael: A-ah, beleza... Valeu por avisar.

Levando com certa dormência e me dirijo ao banheiro para lavar o rosto. O gato preto do Isaac estava frisado em mim, observando da porta, talvez aguardando que eu o alimentasse.

Nathanael: Ooh Isaac, você já deu de comer pro gato?

Isaac: Ah é, tava procurando ele.

Meu companheiro de equipe adora animais, acho que prefere a companhia deles aos membros da L.E., o que me assusta um pouco, considerando - ao exemplo de uma infestação – se ele prezar mais pela vida dos mascotes a dos seus companheiros. Segui caminho para o refeitório, com sorte já estão servindo o café da manhã. Alguém chega pelas minhas costas e agarra meu braço. Por pouco não saco meu revolver de bolso, me deparando com uma mulher loira, trajando um avental cientifico. Era Maria, médica e psicóloga da Legião, e líder do Centro Médico.

Maria: Precisamos conversar.

Nathanael: Sobre o que?

Maria: Aqui não. Estaremos mortos quando descobrirem.

E me arrasta pelo corredor.


Petshop Le Rêve D’un Chien - companheiro Nathanel – 16h27min – 22/06/2012 (BL)

Continuo minha busca aos fundos do estabelecimento, e encontro o único sinal da epidemia visível ali dentro: uma rachadura no topo de uma das paredes, onde um grupo de pombas tinha feito o ninho. Uso querosene e o isqueiro para incinerá-las. Afino os olhos, os ouvidos e a mente para procurar mais manifestações da praga. Tirando a morada dos pássaros, a petshop estava impecável. Sento no balcão de venda e tento usar o comunicador. Mais uma vez, em vão, apenas o mesmo chiado irritante de antes. Ouço os infectados gargarejando lá fora.

Nathanael: Situação chata, ehin...

Acendo um cigarro, inspiro uma boa quantidade de gases tóxicos para dentro do meu organismo, e começo a pensar sobre a minha vida. Meus objetivos, desejos e sonhos. Mas estes pensamentos não têm o mesmo gosto de antes; não sinto mais o deleite crocante mágico de poucos meses atrás. E é neste momento que percebo o quão miserável e sem sentido é minha situação.

Ando um pouco desanimado, e não sei se a depressão é decorrente do cansaço, ou pelo fato de terem me abandonado aqui para morrer. Creio que estes seres que se contorcem e gemem lá fora tem uma parcela de culpa. Não vou dizer que se tratam de demônios mitológicos imergidos do Inferno, pois os estaria exaltando. Há cerca de 3 meses, essas criaturas dominaram a Terra, dizimando nossa espécie e assumindo o controle da casa.

Pelo menos é o que eu acredito, pois quase nunca encontro uma pessoa normal quando ando na rua. Todos transformaram-se neles. Antes do fim do mundo, surgiram muitas teorias para explicar a origem dessas aberrações. Não tiveram tempo de realizar qualquer estudo – o mundo acabou muito rápido – então só temos especulações. A “pseudo-explicação” que pegou foi a da doença. Uma enfermidade inédita; sendo nunca antes visto nada igual na história humana. Uma doença que nos metamorfoseia em monstros. A grande epidemia, como a gripe aviária; não, melhor dizendo, a Pandemia da pior ameaça que nossa espécie já viu. O vírus, ou seja lá o que for, se prolifera por toda parte, qualquer meio ou situação imaginável. Pessoas, animais e mesmo os mais inertes agentes do ambiente podem ser infectados e se tornarem potenciais inimigos. Às vezes penso se os móveis não vão criar garras e dentes e tentar me devorar.

É realmente algo a se agradecer: estar vivo. Recordo-me quando tudo começou, eu era apenas uma presa com um revolver vagando sem rumo, esperando a munição acabar para virar petisco, quando fui salvo por uma equipe da Legião da Esperança - “L.E.” caso você não tenha saliva para falar tudo isso. Era um grupo de sobreviventes que admitia apenas membros (ou “companheiros”, como virou hábito chamar) que pudessem oferecer alguma habilidade no confronto contra os infectados. No caso, me acolheram por minha especialidade com armas de fogo.

O cara que teve essa idéia – da Legião - Coronel Henrique (não sei exatamente o porque do “coronel”, mas deve ter sido o cargo que exercia quando trabalhou nas Forças Armadas Brasileiras) queria montar – no menor espaço de tempo possível - um exército de soldados treinados para impedir a infestação, mas o plano ficou um pouco mais complicado depois que as centenas de milhares de devoradores de homens tomaram o planeta. Bom, de qualquer jeito eu tive sorte. Se estivesse fazendo companhia aos “enfermos” ou em algum grupo ineficiente, já estaria morto.

Mas isso não faz muita diferença, não agora que me abandonaram aqui para morrer. Se me lembro bem, todos os que tiveram o mesmo destino – se perder do resto da equipe – nunca mais voltaram. Resgates não são muito bem sucedidos por estas bandas. Sabe, é uma sensação bem amarga, não poder fazer muito pela própria vida. Acho que os malditos já sabem que tem comida aqui dentro; ou pelo menos tem uma hipótese, levando em conta que os disparos vieram logo ali da calçada. Não consigo descrever o calafrio nauseante que sinto, só de imaginar ser pego pelos demônios. Agonizar com os canibais experimentando da minha carne, e ainda com o sádico infortúnio de transformar-se num deles; perder o senso racional, as emoções, e ser movido apenas por impulsos básicos. Prefiro morrer a me sujeitar a isso, e por tal motivo sempre carrego - escondida em um compartimento oculto na manga do meu casaco - uma pequena pistola 9 mm Walther (arma curta padrão do exército português), para usar em mim mesmo quando sentir que tudo está acabado. Pode parecer grosseiro, mas é um pensamento comum nos dias de hoje.




Base da Legião da Esperança (L.E.) – Centro Médico (2º andar) – 05h35min - 22/06/2012 (BL)

Maria me trancou junto com ela no consultório, disse que tinha assuntos bem importantes para tratar.

Nathanael: O que você quer? Eu ando muito ocupado, sabia?

Maria: Quero que ponha isto na lista de mantimentos.

Ela me entrega um papel, rasgado e amassado, onde constava o item que tanto desejava.

Nathanael: De novo você me vem com essa história. A última vez que burlei a lista por sua causa quase dormi junto dos monstros naquele laboratório de homeopatia (isto é, manipulação de medicamentos). E você nem cumpriu sua promessa.

Maria: Se você tivesse feito sua parte do acordo eu teria cumprido.

Nathanael: Porque você precisa transgredir a lei e me levar junto? Porque simplesmente não diz pro Contador que realmente precisa desses produtos?

Maria: Não é tão simples assim, quando refere-se a algo pouco conhecido entrar na lista, qualquer item que não era usado corriqueiramente antes do Holocausto, precisa-se de um extenso relatório argumentando porque o produto é útil, e que bem fará aos membros da L.E.

Nathanael: Você não é médica? Pode contornar isso. Inventa alguma coisa usando um monte de palavras difíceis.

Maria: Mesmo assim. Coronel não elegeu Edgar como Contador à toa. Aquele nerd tem um certo entendimento das mais diversas áreas do conhecimento humano. Ele vai perceber.

Nathanael: Bom, eu não arrisco meu pescoço de novo por nada nesse mundo.

Maria: Horas, já se esqueceu do nosso acordo, Nathanael?

Maria tirou o avental, revelando roupas mais casuais, onde pude relembrar seus belos e aconchegantes dotes físicos. Ela seria a musa inspiradora de qualquer poeta – pelo menos qualquer poeta com a sanidade no lugar. Sua hipnotizante aura se aproximou de mim, lentamente, e aquele perfume viciante bateu contra minha face. Ela dava muita atenção a aparência, como se isso fizesse diferença no fim dos tempos – e sem ressaltar, como tratava-se de uma médica, o perfume poderia desencadear uma reação alérgica no paciente. Mas quem se importa, o mundo nunca iria acabar se mulheres como ela continuarem existindo. A tal altura, minhas pulsações dispararam com a proximidade, os lábios dela quase tocavam os meus; foi quando ela sussurrou:

Maria: Se você me trazer esse presentinho escrito aqui, eu me caso com você.


Petshop Le Rêve D’un Chien - companheiro Nathanel – 16h41min – 22/06/2012 (BL)

Algo bate com força contra a porta de entrada. Sinto um aperto na tomada de decisões. A poluição sonora que produzi ai em frente deve ter atraído dúzias deles. A vizinhança inteira está vindo me cumprimentar, e eu não tenho munição para tanto. Não importa quão boa sejam minhas técnicas de tiro, vou perder o jogo no próximo turno. Conformei-me com a morte na primeira semana de Holocausto; não sobreviveria se não o fizesse. Mesmo assim, as pulsações elétricas do meu cérebro me impeliam a depressão. Tento refrescar a mente. Não há saída pelos fundos, e mesmo se conseguir escapar desta sepultura, vou ter que cavar outra alguns quarteirões depois. Não saiu daqui vivo, a não ser que seja resgatado.

Porque eles não vêm logo? Será que eu não mereço nem ao menos uma tentativa? Bando de $¨%$*% ingratos; depois de tanto tempo servindo lealmente a L.E. simplesmente me jogam fora como lixo. Também desejo que todos eles morram! ... Não... Espere um pouco, eu era importante, tinha alguma utilidade; não me abandonariam assim. Talvez só não saibam minha localização. Uso o comunicador, deposito toda fé e esperança que encontro naquele pequeno aparelho, e mais uma vez o chiado de interferência vem me assombrar. Tecnologia é como o casamento, só está ao nosso lado na saúde. Essa circunstância me remota ao começo da infestação, quando telefones, celulares, t.v.s, Internet e qualquer ferramenta de transmissão entraram em curto. É quando me dou conta que o comunicador não vai funcionar, não a tempo.

Eles não vão me encontrar, e, conhecendo o animo daquela gente, já devem ter desistido da busca. Não há mais cartas para jogar; acabou para mim. Só restou dois caminhos: morrer nos dentes deles, ou pelas minhas próprias mãos. Pensando bem, se o caso é padecer de uma maneira ou de outra, todavia eu posso levar alguns deles comigo, finalizar quantos puder antes do meu coração parar de bater. Não, isso nunca funcionou. Remeto-me aos pobres coitados que fizeram tal heroísmo, e todos, logo após executar um ou dois infectados, eram cercados e devorados. Nem tiveram tempo de se suicidar. Eu prefiro tudo, menos virar um deles. Essa definitivamente não é uma opção.

Então o que faço? Saco a Walther e me mato agora mesmo? Realmente não há mais nada o que fazer?

Eu preciso mesmo morrer no final dessa história? Me volto para a única passagem para um lugar melhor: o comunicador. Eu queria tentar, só mais uma vez. Não deixaria este plano sem a certeza de ao menos ter tentado. O aparelho não funciona, de novo. Pelo menos desta vez não cultivei tanta esperança. Mas o que eu faço agora?

“Se mata...” diz uma voz na minha cabeça.

Hum, então é isso. Aconchego-me em um canto da loja e fico em silencio. Tento pensar em momentos felizes da minha vida, que valeram a pena. Quando me dou conta estava em mãos, já empunhado da manga do casaco, o fim de todas as minhas lamúrias. Minhas mãos tremiam, mas dava para manter a arma firme. Bom, lá vamos nós...


Base da Legião da Esperança (L.E.) – Dormitório masculino (2º andar) – 05h47min - 22/06/2012 (BL)
O refeitório estava fechado ainda, então voltei para a cama, para tentar dormir um pouco antes que o alarme soasse. Era muito tentador o acordo de Maria, mas eu tinha que refletir um pouco. No curto período de vida da L.E., ouve apenas um casamento, entre um velhinho que trabalhava na cozinha e uma senhora da enfermagem. Algumas semanas depois do sagrado matrimonio, eles morreram de mãos dadas em um ataque dos infectados. Talvez esse fosse um sinal.

Não conseguia pegar no sono em decorrência dos pensamentos, então me levantei e fiquei sentado na beira da cama. Foi quando senti uma presença maléfica no cômodo.

Coronel: Nathanael...

Nathanael: Ah... Olá Coronel, tudo bom?

Coronel: Por onde esteve? Estava te procurando para entregar a lista de mantimentos. Os membros da E.B.M. somem subitamente de vez em quando.

Nathanael: Nossa, a lista já está pronta? Que rapidez...

Coronel: É, Edgar é um membro muito prestativo. Vocês partem hoje as 16:00h. Quero que se preparem física e mentalmente.

Nathanael: Mas tipo, hoje não é feriado internacional? Dia da árvore ou coisa assim? Deveríamos ficar todos aqui para comemorar.

Que saudade dos feriados. A única função do calendário ultimamente foi distinguir as estações do ano; você sabe, as mudanças climáticas entre elas interferem na produção da colheita. Ah, e o lance do dia da árvore era brincadeira; nunca fui muito bom para guardar datas na memória. Só espero que o Coronel leve na esportiva.

Coronel: Nathanael...

O Coronel nunca demonstrava emoções, não no rosto, mas sua voz ficava mais gutural quando estava irritado.

Coronel: Permita-me explicar de um modo simples, que você entenda.

Ele se aproxima do aquário de Isaac e, com a agilidade de um felino, apanha um dos pobres peixes em um reflexo assustadoramente ágil.

Coronel: Está vendo este ser irracional cuja vida não tem nenhum grande sentido?

Nathanael: Estou... Ele é do Isaac.

Coronel: Ele representa você. Não, melhor dizendo, ele representa todos os membros da Legião da Esperança; com formas, cores e opiniões diferentes. O aquário representa este abrigo, onde todos nós chamamos de lar e nos sentimos confortáveis aqui dentro. Fizemos daqui nosso habitat natural.

Nathanael: Uhum... Continua, tá legal...

Coronel: Olhe para o peixe, ele está morrendo. Isto porque o tiraram de seu habitat natural. Se não sair logo desde novo e assustador terreno hostil, o qual teve o infortúnio de conhecer, ele certamente terá um triste fim.

Nathanael: É verdade, põe ele de volta.

Coronel: Mas se ele está assim apenas por permanecer fora do seu habitat, imagine só se deparar-se com um inimigo.

Foi quando percebi o gato preto do Isaac, arranhando as botas de couro do Coronel e suplicando o petisco.

Coronel: Tudo acabar tão rápido...

O Coronel, vagarosamente, deixa o peixe escorregar de sua mão. Ele cai em queda livre, até o gato o abocanha no ar e o ingerir antes de suas patas alcançarem o chão. Velhote miserável.

Coronel: Esta é a sua situação, Nathanael. Eu, e mais ninguém, escolhe quem fica aqui dentro, e quem fica lá fora. Então, é melhor me agradar e ir se preparar para a missão logo... Antes que eu mude de idéia quanto a deixar esta insolência passar...




Petshop Le Rêve D’un Chien - companheiro Nathanel – 16h49min – 22/06/2012 (BL)

Comunicador: Nathanael, você está na escuta?

A voz, incrivelmente familiar, chega glamorosamente aos meus ouvidos.

Comunicador: Nathanael, você está na escuta?

Jogo a 9 mm para longe e apanho o comunicador, eufórico.

Nathanael: Isaac!! Graças a Deus!!

Comunicador/Isaac: Nathanael...

Nathanael: Cara, você tem que me ajudar. Estou preso em uma petshop, e os $¨%&% cercaram o lugar. Estão tentando entrar...

Isaac: Porque você fugiu?

Nathanael: O que?

Isaac: Nós somos instruídos para manter o grupo sempre junto, mas durante o atentado você mandou alguns disparos contra o inimigo e depois fugiu...

Só faltava essa...

Nathanael: Ah, Isaac; não é o que você está pensando. Eu não fugi, aconteceu uma coisa. É meio complicado, depois eu explico. Pelo amor do menino Jesus, se você não vier agora, eu vou morrer... Você é meu amigo, não é?

Isaac: Hum...

Nathanael: Isaac?

Isaac: Qual é a sua localização?

Nathanael: Na petshop no começo da Rua dos Espíritos.

Isaac: Ah ta. Você não foi muito longe. Espere até os reforços chegarem aqui, e nós partiremos ao seu encontro.

Nathanael: Não! Não vai dar tempo, eu vou morrer bem antes de vocês chegarem. Eles sabem onde estou, não duro nem mais 10 minutos. Você tem que me ajudar agora. Você, o Donatello e o Thomas, com as habilidades de todos unidas me tirariam desse buraco em segundos.

Isaac: Mas também existe uma grande chance de todos nós morrermos tentando resgatar você...

Caramba, era só o que faltava: ter que suplicar pela minha vida.

Nathanael: Veja bem o que você está fazendo: descartando o melhor atirador da equipe. São meus tiros certeiros e sem desperdício que ficam entre nós e os monstros. Vocês não duram nem mais uma missão sem mim.

Isaac: O.K., vou discutir com a equipe as opções e chegaremos em um consenso.

Nathanael: Isaac... Nós somos amigos, lembra? Não pode jogar a decisão se eu vivo ou morro em uma discussão idiota... Porque... Nós somos amigos =D ...

Isaac: Você ficara sabendo a conclusão em breve. Cambio, desligo.

Nathanael: Seu desgraçado $$#@%!! Você não pode deixar tudo assim... Não pode me deixar aqui... Eu também sou da equipe... Vou voltar dos mortos atrás de você!! Seu desgraçado... Me escuta, por favor...

Mas apenas o chiado estava me escutando.


Cidade de Bela Linhagem (BL) – 16h10min - 22/06/2012

Depois daquela ameaça desnecessária por parte do Coronel, só me restou seguir viajem junto com Isaac, Donatello e Thomas, a procura dos malditos itens da lista. Mais uma missão da Equipe de Busca e Mantimentos. Talvez nós retornemos fartos, com um saco natalino cheio dos produtos tão cobiçados pela L.E.; talvez voltemos sem nada, e todos nos olhem com olho de maldição; talvez nunca mais voltemos. Qualquer coisa pode acontecer, o mistério paira, e é essa a graça do show – para o Coronel. Velhote miserável. Agora tínhamos que vasculhar as ruas, a procura dos pontos onde pudéssemos encontrar os tais mantimentos. Isaac, ao volante, sempre sabia a direção certa, de qualquer lugar que seja; Eu, claramente, cuidada dos freqüentes duelos contra as forças inimigas; Donatello reparava o veículo no caso de imprevistos; e Thomas, verificava a qualidade dos produtos antes da captação. Todos, obviamente, tinham noção de como usar uma arma.

Donatello: Vocês perceberam como a gente sempre fica infeliz quando sai nessas missões?


Rua Arco-Íris – companheiros Nathanael, Isaac, Donatello e Thomas – 16h12min - 22/06/2012 (BL)

Estava tudo indo bem - apenas passeávamos de olhos abertos – quando algo invisível se choca contra o jipe. A direção falha imediatamente; se não fossem as manobras cinematográficas de Isaac, teríamos condecorado um muro de concreto com as nossas vidas.

Thomas: Pelo amor de Deus, o que houve Isaac?

Isaac: Atiraram contra nós.

Donatello: E está esperando o que para nos tirar daqui?

Isaac: A bala acertou em cheiro no motor. O desgraçado mira muito bem.

Eu já tinha uma idéia do que estávamos enfrentando.

Nathanael: Ele está usando um rifle de longa distância. Deve estar entrincheirado em algum dos edifícios a nossa frente.

Ele com certeza estava lá, e se nós não fizemos nada, a brincadeira de tiro-ao-alvo iria começar. Reparei na névoa: a densidade estava aumentando rapidamente. Talvez tenhamos ganhado uma vantagem. Sai do veículo com cautela, quanto um outro projétil atravessou a porta-escudo, por pouco não levando meu intestino junto. Dessa vez consegui pegar seu ângulo de visão, e logo o encontrei. Estava em uma janela de apartamento no 5º andar de um prédio, não muito longe. Meu Mosin Nagant poderia alcançá-lo. Saltei para trás do veículo, por pouco não perdendo meus miolos em outro disparo. A mira dele estava lenta por causa da névoa, mas acho que não podia aproveitar dessa vantagem por muito tempo, a morte passava raspando. Gritei para que todos dentro do jipe se abaixassem e forjassem alguma proteção provisória. Seguiu uma série de disparos, mais a blindagem do teto do jipe resistiu. Agachei e comecei a me arrastar por baixo do veículo, sobre uma interrupta linha de fogo, atravessei todo o escapamento e cheguei à frente.

Mirei o alvo. Ângulo não era dos melhores, mas dava para o gasto. A névoa abaixou um pouco a intensidade, como uma interferência divina para eu finalizar meu oponente. O Nagant não tinha mira telescópica, era apenas eu e as limitações do sentido da visão humana. Tinha apenas uma chance: minha técnica secreta. Teria que te matar se dizesse onde aprendi. Tratava-se de uma arte milenar, utilizada para atingir elementos fora de foco – isto é, providencia verdadeiros milagres no ato de mirar e atirar. Teria que me concentrar, sentir o alvo. Segundo os ancestrais mestres que me ensinaram tal habilidade, todos os seres-vivos estão ligados por um fluxo de energia, conectados pelos longínquos campos do subconsciente. Se conseguirmos aprimorar essa parte do cérebro a um bom nível, poderemos nos “conectar” com outras formas de vida a distância que for, não fazendo diferença milhas ou centímetros. É a habilidade de “uni-mente”. Pronto, já confessei muito, é hora de agir. Atiro; a bala corta a névoa e, como um milagre, acerta o alvo na mosca.

Ou quase. Consegui apenas destruir a visão telescópica do rifle dele, mas o desgraçado em questão fugiu. Mas eu sei muito bem de quem se trata. Um homem solitário, com um perturbador desvio de personalidade; Santacruz, um maldito serial killer que compete com a praga para ver quem tem mais baixas na ficha criminal. Não sei exatamente o que acontece com este psicopata sem amor pelo próximo, apenas que ele considera os outros humanos uma ameaça tão grande quando os próprios infectados. Quando se depara com outro sobrevivente, sem mais nem menos, tenta matá-lo. Eu já parei de tentar compreendê-lo, e a única coisa que me vem à cabeça quando o encontro é tentar tirar essa ameaça das ruas.

Nathanael: Bom, vamos terminar essa missão.

Foi quando aquela brisa macabra veio do além para açoitar minha alma. Senti uma nova espécie de vertigem, uma mudança brusca na velocidade em que o sangue corria no meu corpo; drásticas alterações em toda minha fisiologia. Virei-me; a figura sombria, aterrorizantemente familiar, perambulava no final da rua. Não era nada mais, nada menos que o cão com cabeça de ferro que abismava meus sonhos, uma aparição física do pesadelo, andando a luz do dia. Por pouco não tive uma parada cardíaca.

Nathanael: Mas que #$%#$ é você? ...

Como no sonho, ele veio até mim, naquele trote torto e mal calculado, e te digo, o animal era muito mais feio quando iluminado pelo Sol. Estava paralisado, minhas pernas não se moviam, como se alguns duendes travessos tivessem injetado um anestésico em mim sem eu perceber. Consegui empunhar o rifle: talvez se conseguir matar esse desgraçado aqui e agora eu consiga sonhar com coisas mais legais, tipo fadas e unicórnios. O cachorro interpretou o sonho perfeitamente como um ator de teatro: ele parou alguns centímetros de mim e latiu. Depois deu meia-volta e foi embora. Aproveitei que o ambiente estava melhor iluminado do que meu sonho, e o segui. Acho que alguém me chamou ao fundo, o Isaac ou o Donatello, mas continuei em frente; parecia algum tipo de transe, tudo era tão surreal. Segui o cabeça de metal até a avenida Jardim Encantado, quando ele desapareceu na névoa.






Petshop Le Rêve D’un Chien - companheiro Nathanel – 16h55min – 22/06/2012 (BL)

Agora é só rezar que Isaac venha logo. Ele deve gostar um pouco de mim, já passamos um bom tempo trocando ossos do ofício e experiências de vida em conversas fúteis pelas infinitas horas que duram as missões. É, ele vai vir. Tem que vir... Deus queira que venha... Mal levanto do canto onde deveria ter dado o último suspiro, o comunicador voltar a chamar.

Coronel: Nathanael, você está na escuta?

O Coronel? O que ele quer? Curtir os últimos momentos antes da minha morte?

Nathanael: Coronel, pelo amor de Deus, você tem que ajudar... Acabei de falar com o Isaac e ele estava um pouco relutante em vir me salvar. O senhor e o seu amor pelas pessoas são a minha única esperança...

Coronel: Bom, só queria te dizer que, em situação crítica ou não, você ainda tem um dever para cumprir para com a L.E. ...

Ele só podia estar brincando.

Nathanael: Ah, poderia ser mais especifico senhor?

Coronel: Estou dizendo que encontrar os mantimentos necessários ainda é a prioridade, muito maior que a sua própria segurança.

Nathanel: Mais, sabe Coronel... Tipo, eu tenho que estar no mínimo vivo para conseguir os mantimentos, e depois entregá-los devidamente na base.

Coronel: Mesmo cercado pelo inimigo e sem ajuda externa, todos vocês foram instruídos de memorizar cada item que consta na lista; então, você ainda tem a capacidade de procurá-los e possuí-los.

Nathanael: Eu estou em uma petshop, senhor...

Coronel: Cumpra com o seu dever, não admito falhas. Cambio, desligo.

Velhote miserável. Isaac tinha razão, ele tem alguma coisa contra mim. Eu quero que o cretino se dane, vou ficar bem aqui, fantasiando. “Peixes no aquário”, a pior besteira que já ouvi na vida, nem ao menos filosofar aquele imbecil sabe.


Base da Legião da Esperança (L.E.) – Centro de Comando Exterior (3º andar) – 17h03min - 22/06/2012 (BL)

Coronel: Equipe de resgate temporária, qual é a sua localização? Cambio.

Comunicador: Estamos próximos do centro da cidade; a Equipe de Busca e Mantimentos será alcançada em breve. Cambio.

Coronel: Excelente. Qual é o nível de infestação? Cambio.

Comunicador: Até agora nenhum infectado. Cambio.

Coronel: Hum... Apenas contatei para alertar sobre uma mudança brusca no clima.

Comunicador: Senhor?

Coronel: Aquele meteorologista que ingressou há pouco tempo descobriu uma anomalia atmosférica. Eu não compreendo esta ciência por completo, mas segundo o especialista trata-se de uma tempestade semelhante a que ocorreu na véspera do fim do mundo. Recorda-se?

Comunicador: Sim, senhor.

Coronel: Então compreende a ameaça. Quero que agilize a operação.

Comunicador: Entendido, senhor.

Coronel: E não se esqueça, ao entrar em contato com a Equipe de Busca e Mantimento, descubra a localização do membro Nathanael Augusto e também o resgate. É uma prioridade. Cambio, desligo.


Petshop Le Rêve D’un Chien - companheiro Nathanel – 17h09min – 22/06/2012 (BL)

Tinha ficado tão feliz com o comunicador voltar a funcionar, mas ele só tem me trazido má sorte e stress. Tenho vontade de quebrá-lo agora.

Comunicador: Hey Nathanael, responda!

Não tinha como confundir aquela voz feminina.

Nathanael: Maria? Você está na ponte de comando?

Maria: Não, isso aqui é uma radio pirata que eu construí junto com uns amigos, mas não conta pra ninguém, tá?

Nathanael: Tá.

Maria: Conseguiu pegar a nossa parte do acordo?

Nathanael: Aff... Fomos atacados, me separei do grupo e agora estou preso em uma petshop com dezenas deles me esperando lá fora. Como você quer que eu encontre qualquer coisa nessa situação?

Maria: Oh, querido Nathanael, assim não vai ter como eu cumprir a minha parte do acordo. E olha que o único motivo pelo qual incisto tanto nisso é porque quero viver feliz para sempre ao seu lado.

Nathanael: Sério?

Maria: Sério! Você é meu príncipe encantado. Agora porque não sai desse ninho de ratos e vai procurar o que sua noiva tanto quer, ehin?

Que sensação de sufocamento. Aquela petshop miserável era tão solitária.

Nathanael: Ah, Maria, posso te perguntar uma coisa?

Maria: Claro, amor. Tudo o que você quiser.

Nathanael: Como você está se vestindo?

Maria: O que??

Nathanael: Como você está se vestindo? Poderia descrever para mim? ...

...

Maria: Vai para o Inferno, seu cretino!! Agora não é hora para isso... Traga a porcaria do produto ou nada feito... Cambio, desligo.

Mas que droga, está tudo dando errado. Agora sim eu vou quebrar o comunicador.

Comunicador: Abaixe-se...

Nathanael: Ahm?

A voz era familiar, mas não era Maria.

Comunicador: Granada... Abaixe-se...

Senti outra coisa pairando no ar. De repente, tudo veio ao chão. Uma explosão, bem em frente a petshop, fez a loja aos pedaços. Estilhaços dos vidros, das paredes e da mercadoria voaram como um ataque de artilharia. O estrondo e o impacto me atingiram em uma sincronia tão perfeita, que imaginei estar morto. Mas, graças ao meu tato para com situações críticas, me joguei atrás do balcão antes da catástrofe.

Nathanael: Jesus...

Observei a grande cratera que ficou no lugar de onde era a antiga porta de entrada. Na rua também predominava o caos; a fumaça substituiu a névoa e havia corpos de infectados destroçados para todos os lados.

Isaac: Nathanael, você está vivo?

Ao mesmo tempo em que ouvi a pergunta, esqueci a dor e a zonzeira, e gritei.

Nathanael: Isaac!! Eu sabia que viria!! Não perdi a fé por um segundo...

Isaac: Temos que ir. Uma equipe reforço chegara daqui a pouco na rua Arco-Íris.

Nathanael: Ow, me ajuda aqui... Acho que parti a coluna...

O que aquele cachorro do meu sonho representa? Como ele se materializou em carne e osso? Cara, minha cabeça não para de zunir, como se eu estivesse usando um chapéu de colméia, e todas as abelhas inquilinas saíssem para lutar com seus ferrões e sua coragem suicida, prontas para morrer em nome da rainha. Não consigo pensar direito, mas acho que o Coronel está tramando alguma coisa... E o que Maria está planejando fazer com aquele pedido bizarro? Alguma experiência? Quem disse “se mata” naquele meu momento de desespero? Apesar de Isaac estar aqui, sinto que algo muito ruim se aproxima...




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Todas as imagens foram gentilmente roubadas do belíssimo acervo de Ana Cristina, minha querida amiga escritora, tradutora e vampira. Espero que não se importe, e obrigado Ana!

Por favor, não me venham com aquela velha história de que as imagens “não estão no clima”, pois as pus no texto por luxo e também como marcação, para maior conforto no momento de ler este texto relativamente longo. E também é uma blasfêmia reclamar de imagens de tamanho bom gosto.

Caio Tadeu de Moraes

4 comentários:

Unknown disse...

E como sempre, o primeiro comentário meu :P
ótimo episódio, intrigante, misterioso, com suspense.
Vê se escreve logo o terceiro capitulo
até mais!

Fillipe Ramos disse...

O que falar de Caio? Não adiante.. para mim eh Kaio.. O brow locão d Sampa.. Pelo q vejo vc se adaptou mto bem a blogosfera né maninho?

Anda sumido do msn! (deve ser escrevendo)

Não some porra!

até.. Abraço..

Unknown disse...

Muito legal a historia, estou curtindo muito
espero que saia logo o proximo capitulo

continue assim

Mario Carneiro Jr. disse...

Tá muito bom, hein rapaz? O ritmo está bom, cadenciado, como nas boas histórias de sobrevivência pós-holocausto. As conversas, os diálogos, as elucubrações, tudo muito coerente. Há muitas frases espertas também, o que dá vida a qualquer história (por ex: “Tecnologia é como o casamento, só está ao nosso lado na saúde”).

Você também pensou em detalhes intrigantes sobre como seria a vida dos sobreviventes, o que pode ser conferido quando você fala sobre as listas, sobre a utilidade do calendário, etc.

O suspense do personagem pensando em suicídio é bem eficiente (aliás, usar duas linhas temporais e ir pulando de uma pra outra, nos momentos chave, é um recurso inteligente, além de ir explicando aos poucos como aquela situação aconteceu).

Enfim, acho que está bem melhor que os primeiros capítulos que li. Lembro que fiz várias críticas, mas aqui não encontro o que criticar. Você realmente conseguiu tomar as rédeas da sua história. Logo logo leio os próximos capítulos.

Abraços, até mais!