quinta-feira, 18 de abril de 2019

Capítulo 1: "Germes da Sobrevivência"



Av. Jardim Encantado - 16:12 - 22/06/2012 (BL)


A cabeça dele estava na minha mira. O indicador acariciava o gatilho, e meus instintos sabiam muito bem o que tinha que ser feito. Parado a alguns metros de mim, talvez certificando-se se o companheiro do outro lado da rua (eu) fazia mesmo parte da sua prole; isto é, se era degustável ou não. Quando certificou-se que me foi dado a auto-consciência, iniciou um leve caminhar na minha direção. Tratava-se de um velho senhor de cabelos grisalhos, camiseta xadrez azul e branca, e calça de moletom. Seu corpo fora bem conservado, tinha uma ótima aparência; se não fosse o tom de pele mórbido, os olhos esbranquiçados pela catarata e a boca espumando sangue e restos humanos, nem o veria como uma ameaça.

Ele estava na mira. Aquilo só podia terminar de um modo; todas os ingredientes da circunstância unidos poeticamente para alcançar apenas um resultado; um ato encenado e minuciosamente reeleito; uma ação com somente uma conseqüência possível; um efeito pré-determinado. Você entendeu, mas eu adoro esse jogo de palavras. Apesar da ocasião ser perfeita - a mira e tudo mais - meu lado racional hesitou. Ah, meu lado racional... Não sei se poderia odiar-lo tanto quanto o amo.

Empunhava um rifle M-44 Mosin Nagant, de produção russa, e tinha completa ciência do risco: o disparo atrairia mais deles. Muito mais deles. Os malditos conseguem infestar um recinto inteiro em segundos, como uma praga de gafanhotos; digo por experiência própria. Meu rifle, tão tentador, era inútil se eu não tivesse um bem disposto veículo de escape para me auxiliar. Como eu queria que o desgraçado do Isaac estivesse aqui; desejaria ao gênio da lâmpada se pudesse.

Para falar a verdade, eu estava um tanto desnorteado, melhor dizendo, em estado de pânico, pois não acreditava que meu leal meio de transporte me abandonou naquele festival macabro com chance nula de sobrevivência. O comunicador parou de funcionar desde que me perdi, e a sensação de estar sozinho me esganava vivo. Tentei contra-balancear o medo, certamente morreria se não o fizesse. O alvo se aproximou, esticando os braços para me alcançar, com sua vaga noção de distância. Analisei a situação o máximo que pude. Se eu fugisse, ele viria atrás e seus grunhidos poderiam atiçar os outros. Isso seria ruim.

O atingi com uma coronhada no rosto, afundando a coronha da arma na sua face e esbugalhando seus olhos - não podia arriscar usar o poder de fogo do rifle e denunciar minha localização. Segui pela avenida em passadas ágeis, mantendo extrema fixação com os arredores. Ficar andando á céu aberto é um chamariz para os miseráveis virem ao banquete. Poderiam vir de qualquer lugar: casas, carros, pilhas de escombros, bueiros de esgoto, debaixo da terra. Até do céu eles podem cair - como algum tipo de prova visual comprovando a teoria da abiogênese, cujo os evolucionistas deixaram passar.

Estava numa posição desconfortável na cadeia alimentar e precisava criticamente encontrar abrigo; uma proteção provisória até conseguir contato com o centro de comando. Se me lembro bem, tem uma casa-n'-árvore virando na próxima a esquerda. Casas-n'-árvore são refúgios muito úteis contra este tipo particular de inimigo, e digo de experiência própria. Dobro a esquina e tenho outra surpresa: um individuo de jaqueta jeans e cabelo raspado, atirado ao chão, se alimentava de uma carcaça humana. Dois grandes abutres lutavam pelas sobras, jorradas ao seus bicos pelo agressivo deleite canibal da criatura. Quando me viu, o filho da mãe parou o que estava fazendo e saltou pra cima de mim. O susto foi tanto que mal tive tempo de raciocinar: empunhei a arma e atirei. A cabeça do ser se desintegrou. Fragmentos de crânio, cérebro, memória e alma fruíram impetuosamente nos mais diversos ângulos. Lembrei-me de como este rifle podia fazer um estrago e tanto; o que aumentou um pouco minha confiança.


Rua dos Espíritos - 16:17

Mas não tinha tempo de me vangloriar: aquilo ali enfartaria de malditos, procurando com curiosidade a origem do som. Logo deparei-me com a primeira leva: 4 amaldiçoados, imergidos de alguma fossa fora de visão, corriam num trote desajeitado ao meu encontro. Acredito agora não ter outro opção a não ser limpar o caminho e seguir adiante. Encontravam-se a certa distância, e usufrui-me da vantagem para me posicionar e mirar. Puxo a alavanca da arma, ejetando o cartucho utilizado, e a retorno, dando lugar a uma nova bala. "O ciclo da morte". O primeiro da lista de execução usava boné e camiseta de torcidas oficiais, a qual não reconheci por não ser muito fã de futebol. Atingi certeiramente seu peito e as costelas saltaram para fora, enfeitando o ar com uma cortina mista de sangue e órgãos vitais. Foi belo;queria ter batido uma foto.

Os outros eram um mendigo trajando farrapos e um homem de boina e casaco pretos, carregando um quadro de pintura abstrata consigo. Acertei a perna do mendigo, precisamente na junta, decepando-a; e as leis da física terminaram o serviço: ao capotar o infeliz caiu de cara, rachando a caixa craniana contra o asfalto. O maluco de preto abati com outro "headshot" - só para testar se eu não perderá a perícia com armas - lançando a boina para fora e manchando sua roupa com os próprios miolos. O último miserável, para meu espanto, vestia-se como cosplay de Alucard, do anime Hellsing - perfeito, com todos os detalhes do original: deste os pentagramas desenhados nas luvas até os óculos característicos. Posso jurar que ouvi a música-tema ao fundo. O projétil atravessou sua cintura, o cortando ao meio e banhando o pavimento da rua com suas vísceras.

Mal pude deleitar a vitória: um aglomerado de malditos, de 20 a 30 aproximadamente, se empalheravam ao final da Rua dos Espíritos. Não iria demorar para me alcançarem; tinha que improvisar um esconderijo, rápido. Por impulso, arrombei a porta de vidro da petshop "Le Rêve D'un Chien" - logo ao meu lado - e entrei. Não sei se foi a melhor escolha, mas, como disse, foi por impulso. Quebrei a maçaneta (nunca se sabe, né) e bloqueei a porta com uma estante. Recarreguei o rifle, esvaindo meu patético estoque de munição, e comecei a observar o novo cenário. Tudo estava no lugar: rações e acessórios para mascotes ajeitados com muito amor e carinho nas prateleiras. Nem parece que o pleno Apocalipse passou por aqui. Só espero que não seja uma daquelas petshops com filhotes à venda.

Vasculhei a loja em busca de mantimentos. Era estranho demais tudo estar tão organizado, chegava a ser bizarro; como se eu tivesse voltado no tempo, antes desse pesadelo foto-realista começar. O ponto mais enlouquecedor era o silêncio, como o sossego dos predadores antes da emboscada. Aquele lugar fora simplesmente intocado, intacto a ação do exterior. Definitivamente um milagre. Mesmo assim, não havia nada de muito útil no estoque: apenas alimento para as criações de gado e antibióticos. Alguém - cuidadoso, aparentemente - tinha se servido antes de mim.

Continuo minha busca aos fundos do estabelecimento, e encontro o único sinal da epidemia visível ali dentro: uma rachadura no topo de uma das paredes, onde um grupo de pombas tinha feito o ninho. Uso querosene e o isqueiro para incinera-las. Afino os olhos, os ouvidos e a mente para procurar mais manifestações da praga. Tirando a morada dos pássaros, a petshop estava impecável. Sento no balcão de venda e tento usar o comunicador. Mais uma vez, em vão, apenas o mesmo chiado irritante de antes. Ouço os infectados gargarejando lá fora.


Rua Arco-Íris - 16:31

Pouco mais de três quarteirões da petshop, outro fator distraia meus famintos perseguidores. Creio ser este contra-tempo que me garantiu mais alguns minutos de vida. O veículo inerte no meio do caminho - um jipe M151, usado pelo exército brasileiro - não estava vazio. 2 passageiros, armados com rifles de assalto, compartilhavam a vigia da área; um abeirando a direita, e o outro, a esquerda do transporte. Os canos das armas apoiados nas janelas, posicionados cada um em pontos distintos: no banco do motorista (Isaac) e no assento do passageiro (Thomas) respectivamente. Estavam atentos, mas tudo o que enxergavam era a imensidão branca da névoa.

Thomas: Nós vamos morrer... Não há como escapar disso; ninguém conseguiu... Vamos morrer! [sussurrou]

Isaac: Realmente Thomas, nós vamos morrer. Mas, por favor, fique calmo.

Thomas: Como você quer que eu fique calmo? Você sabe o que acontece quando nos pegam, não sabe?

Donatello: Vocês querem calar a boca! Estou tentando consertar nosso única chance de sair daqui com vida... [gritou debaixo do jipe]

Ah, sim. O Donatello também estava lá.

Thomas: Não grite! Eles são atraidos pelo som, lembra?

Donatello: Faça o seu trabalho, e eu faço o meu...

Isaac: Muito estranho não acham?

Thomas: O que?

Isaac: Quando o carro estava funcionando, reparei dezenas de monstros vagando pelas ruas, bem perto daqui. Mas faz uma meia-hora que estamos paralisados no mesmo lugar, e nenhum deles apareceu.

Donatello: Graças a Deus, né?

Thomas: É, estamos vivos por causa disso.

Isaac: Mas vejam bem; todos estavam seguindo na direção mesma, o centro da cidade. Como uma migração, ou algo assim. Tem algo diferente acontecendo.

Donatello: Coincidência...

Isaac: Não, tem alguma coisa errada. Talvez eles estejam planejando alguma coisa.

Thomas: Vira esse mal presságio pra lá.

Donatello: O Isaac é louco! Eu digo para todo mundo que ele é uma ameaça e ninguém me escuta.

Thomas: Ameaça é você ficar gritando ai... Acho que eu estaria melhor por conta própria lá fora.

Donatello: Pode ir. De você eu não faço questão.

Isaac: Não vamos perder a cabeça senhores; é a última coisa que a situação exige. Pois bem, alguém sabe o que aconteceu com o quarto passageiro, o Nathanael?

Thomas: Ele fugiu, logo após o ataque. No momento em que o jipe parou, o rapaz abriu a porta e saiu correndo.

Isaac: Sim, eu vi. Mas queria saber o que aconteceu com ele. Nas dúzias de missões que tivemos antes, ele demonstrou muito mais coragem.

Donatello: É um covarde. Sempre foi, só você não percebeu...

Inacreditável: não calam a boca e ainda estão vivos. Agora sim eu acredito em milagres.

Thomas: Porque não tenta usar o comunicador de novo? Talvez a interferência tenha passado.

Isaac: Bom, não custa tentar.

Isaac liga o aparelho e, como um sopro de esperança de última hora, a frequência se sintoniza e o eletrodoméstico volta a ter serventia. Desgraçados de sorte.

Isaac: Está funcionando!

Thomas: Aleluia!

Thomas ri de felicidade.

Donatello: Está esperando o que? Contate a base...

Comunicador: Centro de Comando Exterior da L.E. falando, cambio.

Isaac: Aqui é a Equipe de Busca e Mantimentos falando, cambio.


Base da Legião da Esperança (L.E.) - 16:45

Centro de Comando: Equipe de Busca e Mantimentos, qual é a sua situação, cambio.

Uma figura sombria entra na sala, caminhando com autoridade, logo as costas do jovem na ponte de comando que se comunicava pelo headset.

Coronel: Me dê licença Francis, tenho alguns assuntos a tratar com a equipe de mantimentos.

Centro de Comando/Francis: Claro Coronel, a suas ordens...


Rua Arco-Íris - 16:46

Isaac: Situação crítica. O veículo foi danificado e estamos presos em território hostil. Um companheiro está desaparecido.

Coronel: Isaac...

Isaac: Ah, Coronel?

Coronel: Qual dos companheiros está desaparecido?

Isaac: Nathanael Augusto, senhor.

Coronel: Hum... Agora que a comunicação foi restabelecida, tente fazer contato com o desaparecido novamente. Bons atiradores como ele são difíceis de encontrar.

Isaac: Entendido.

Coronel: Permaneçam onde estão, enviarei reforços e um reboque. Tentem se manter vivos, pois irei arriscar mais vidas para salvar as suas. Não desperdicem meu tempo.

Isaac: Entendido. Obrigado, senhor.

Coronel: E localize Nathanael. Cambio, desligo.

O comunicador volta ao silêncio.

Donatello: "Não desperdicem meu tempo". Aquele velhote mal-agradecido; ele tem a obrigação de salvar a gente e ainda reclama por isso.

Isaac: Pelo menos ele vai mandar ajuda dessa vez.

Thomas: O Coronel parecia interessando em saber se o Nathanael estava morto ou não. Engraçado, não acham?

Isaac: Bom, de qualquer jeito vamos ter que contata-lo; foi uma ordem.

Donatello: Aproveita e chama ele de covarde.

Isaac liga mais uma vez o comunicador e chama pelo tal Nathanael.

Isaac: Nathanael, você está na escuta?

Aguarda alguns estantes, mas ninguém responde.

Isaac: Nathanael, você está na escuta?

Nathanael: Isaac!! Graças a Deus!!

Isaac: Nathanael...

Nathanael: Cara, você tem que me ajudar. Estou preso em uma petshop, e os $¨%&% cercaram o lugar. Estão tentando entrar...

Isaac: Porque você fugiu?

Nathanael: O que?

Isaac: Nós somos instruídos para manter o grupo sempre junto, mas durante o atentado você mandou alguns disparos contra o inimigo e depois fugiu...

Nathanael: Ah, Isaac; não é o que você está pensando. Eu não fugi, aconteceu uma coisa. É meio complicado, depois eu explico. Pelo amor do menino Jesus, se você não vier agora, eu vou morrer... Você é meu amigo, não é?


Base da Legião da Esperança (L.E.) - 16:54

Francis: Senhor, acredita mesmo que no final essa operação terá sucesso?

Coronel: Cale a boca, Francis. Cuide do seu departamento e está muito bom. E me avise se contatarem a ponte novamente.

Francis: Senhor, sim senhor!

O Coronel vira-se, deparando-se com uma mulher apoiada na parede, ao lado da porta, fazendo pose e o encarando.

Coronel: O que você está fazendo aqui?

Maria: Coronel Henrique...

Coronel: Você deveria estar no Centro Médico agora...

Maria: Só queria te perguntar uma coisa.

Coronel: Fale...

Maria: Porque esse interesse repentino em Nathanael? Pelo que sei, nem as habilidades com armas do rapaz ajudou muito para você gostar dele...

Coronel: Veja só! As paredes tem ouvidos agora!

Maria: ...

Coronel: Pois bem; vou responder só porque você é minha querida Maria, membro leal da Legião da Esperança. Preste atenção...

Maria: Estou ouvindo.

Coronel: Nathanael, e suas incríveis perícia em combate, vão ser a peça-chave para uma nova campanha, idealizada por mim. Tal ato revigorara toda a Legião, e certamente ira reverter o jogo da sobrevivência para sempre. E a vitória, finalmente, será da humanidade!!


O Coronel enlouqueceu, e os demônios caminham lá fora. Cama de gato intrincada.

2 comentários:

Unknown disse...

como sempre...muuuito bom!!
Ta melhor até mesmo que o próprio livro do resident evil =P
Continue escrevendo...aguardo ansioso pelo próximo capitulO!
Abraços!
Feliz ano novo!! Muito sucesso pra vc!

Mario Carneiro Jr. disse...

Olá, Caio. Já fiz comentários detalhados lá na comunidade Escritores de Terror (mas digo aqui que gostei!). Se você quiser que mais pessoas leiam, sugiro que participe da comunidade Histórias de Terror. Tem 47.300 membros, então sempre tem gente que lê, rs. Ah, está convidado para aparecer no meu blog. Adicionei o seu blog nos meus links, e também como seguidor. Abraços!