domingo, 13 de setembro de 2009

Capítulo 1 – Inimigo Nacional


Pude ver nos olhos estrábicos do monstro, o olhar que todos eles faziam antes de encerrar a presa. Josué disparava enlouquecido com sua espingarda calibre 12 na direção do escuro. Eu, Marquês e Darwin gritávamos para o perturbado cessar fogo – nosso ex-companheiro preferia recarregar a arma e continuar atirando ao dar-nos ouvidos.
Não que ele fosse um amador qualquer, muito menos estava sob efeito de aditivos químicos: Josué era um profissional de classe, mas tinha medo da escuridão. Não diria medo, e sim uma fobia doentia, um trauma da infância envolvendo uma floresta a luz do luar, um pai esportista alcoólatra e um bando de rottweilers mal-cuidados e adestrados para matar.
Eu sempre soube que esse temor seria sua ruína, mesmo porque a maioria das operações dava-se de noite. Mantínhamos a estratégia de atrair os alvos até ambientes iluminados – entrar em suas tocas era, além do mais puro ato de suicídio, contra o regulamento. Mas nem as regras teriam a sutileza de prever um blecaute elétrico no meio da missão.
Meu parceiro pirou e deu inicio a um tiroteio contra oponentes imaginários no estacionamento do shopping Viva Maria. Fazia uma semana que o local tornou-se foco de suspeitas, quando veículos ali estacionados passaram a sofrer arrombamentos cotidianos, a inconstantes períodos do dia.
Desconfiamos imediatamente que a área comercial era palco de atuação dos nossos inimigos. Os ladrões levavam comida e, se fosse o caso, animais domésticos e crianças. Não tardou para os seguranças do shopping também desaparecerem. Eles continuam sendo os malditos carnívoros insaciáveis de sempre...
Polícia desorientada, autoridades ignorantes sem ciência de como proceder, famílias histéricas, fechamento de comércios e instituições educacionais: a situação se repete toda vez, e no final somos convocados a intervir. Os especialistas em crises urbanas bizarras, peritos em assuntos amaldiçoados.


De súbito, Josué girou 180º graus o cano da espingarda e atingiu o vidro de um carro próximo de Darwin.
- Quase que você me mata seu morfético! – berrou Darwin, sem esconder a alegria por estar vivo.
Passou pela minha cabeça acertar a coronha do revolver na nuca daquele maníaco e bater em retirada – os moradores já deveriam ter chamado a polícia – mas logo percebi que não iria ser necessário.
Rastejando detrás de um Palio cinza, a lua clareou de relance o vulto de um horrendo ser escamoso, provavelmente atiçado pelo barulho. Sustentando-se em duas patas vigorosas, a fera peçonhenta, com seu físico corpulento e aproximadamente 1,50 de altura, arrastava a calda carregada de banha no pavimento, similar ao monstro-de-gila – lagarto do sudoeste americano.
Tinha a cabeça achatada em formato triangular, como o crânio da lagartixa-doméstica-tropical. Os gigantescos olhos bioluminescentes pareciam afrontar direto nossas almas. Graças aos céus a escuridão não me permitiu ver mais detalhes, somente as garras laminadas refletindo a luz lunar.
Marquês apertou forte seu crucifixo. Nossos gritos agora se transformaram em avisos desesperados alertando o perigo iminente. O atirador reparou na ameaça tarde demais.
Pude ver nos olhos estrábicos do monstro, o olhar que todos eles faziam antes de encerrar a presa. Lançou-se para cima do comparsa, mirando a garganta. Era o lugar preferido deles: uma execução instantânea e agonizante da vítima.
- Demônio! – foi a palavra de despedida de Josué.
Ele desviou a pontaria procurando o vulto assassino em alta velocidade. Um disparo. A bala de esperança acerta o vazio. Os dentes espessos do réptil atravessaram agressivamente a leve musculatura do pescoço de Josué. O pobre homem tombou em sangue, formando um carpete vermelho no chão. A artéria principal, que deveria carregar o líquido sanguíneo até o cérebro, agora o desaguava no asfalto.
Empunhamos as armas, mas era tarde. Ainda com os dentes enfincados, os nervos do falecido estremeceram levemente antes dele jazer imóvel. Marquês fez o sinal da cruz com seu calibre 38 – em memória de Josué – terminando o gesto com o reptiliano na mira.
A aberração largou nosso ex-comparte quando avistou os outros três humanos suculentos na vizinhança. Marquês encarou aqueles olhos asquerosos uns instantes, e disparou a potente arma de fogo. O coice do revolver fez jus ao seu poder destrutivo: a caixa craniana da criatura jorrou como um quebra-cabeça de miolos e ossos desmontados.


Observei o rosto mórbido e inexpressivo de Josué. Era inacreditável o fato de que há cinco minutos atrás nós dois discutíamos sobre receitas culinárias. Parecia que a qualquer estante ele iria se levantar do seu trágico leito e prosseguir com a explicação referente ao preparo de uma torta de frango – dando destaque ao minucioso tratamento da carne e os precisos minutos assando no forno.
O monstro sem-cabeça, mesmo desprovido de um cérebro para orientar os membros, manteve o equilíbrio das patas. Marquês sabia que era cedo para comemorar o tiro certeiro – logo o diabo iria empregar sua bruxaria para se esquivar da morte.
A cratera criada nos restos do maxilar superior começou a pulsar. Os pedaços do projétil do calibre 38 foram ejetados para fora da carne. Uma seiva esverdeada transbordou da ferida e, como um truque incrivelmente realístico de mágica, a parte faltando da cabeça renasceu em um estalo viscoso: focinho, dentes, narinas, olhos, perfeitos nas proporções que costumavam ter. Cada detalhe reestruturado feito uma cirurgia plástica espontânea. Terminado o processo de cura, o réptil piscou os olhos e testou o movimento da mandíbula. Estava vivo!
Sempre me recaia um frio no espírito quando os monstros usavam aquele encantamento satânico para reparar quaisquer mortificações, por mais mortais que fossem. Descarregar o pente inteiro do seu fuzil e ver o baleado continuar respirando não é lá a sensação mais reconfortante do mundo. Antes de bater os olhos naquela anomalia medicinal pela primeira vez, acreditava que seres quase ou completamente indestrutíveis, impossibilitados de morrer por armas convencionais, não passavam de histórias mal-narradas do folclore.
- Aprontem o armamento especial – ordenei, tentando retomar o controle.
- Só tenho alguns frascos – desanima Marquês – Deve ter mais no carro.
- Estamos com armas de bom calibre, vamos tentar o extermínio por excesso de dano! – trama Darwin, com sua velha teoria da erradicarão definitiva, segundo a qual se nós permanecêssemos com uma incessante onda de ataques – fuzilamento ininterrupto, munição antitanque, caixas de explosivos, chuva de armas químicas, dança de lâminas e linchamento com ferramentas de contusão – uma hora ou outra a criatura teria que perecer. A falha desse plano era a estrondosa perda de armamento, esforço físico, moral e dinheiro com um único inimigo.
Tratava-se de uma missão de reconhecimento, por isso não estávamos devidamente abastecidos. Não era o tipo de lugar onde os monstros compareciam: preferiam áreas desoladas, com pouca concentração populosa. Eu esperava encontrar uma ovelha desgarrada do rebanho, e pelo visto a achei. Tínhamos o suficiente para fazer aquele lagarto miserável pagar por sua existência.
Imprevistamente, as luzes do shopping Viva Maria acenderam, trazendo o brilho ofuscante do centro comercial a minha visão. Anúncios publicitários e vitrines foram esbanjados na lucidez. Os postes do estacionamento voltaram a funcionar, e a aberração fugiu da claridade. Deviam ter resolvido o apagão, mas o motivo do Viva Maria iniciar suas atividades em tais horas da madrugada era um mistério.
Um veículo acelerou pela rua de frente ao shopping. O portão do estacionamento foi despedaçado por um automóvel robusto, tingido de negro, que rasgava o asfalto com sua forma aerodinâmica e pneus gritantes.


- Boris! – comemorou Darwin.
O possante derrapou, conseguindo parar próximo de nós.
- Entrem no carro! – berrou Boris, nosso motorista.
- Ainda não terminamos aqui.
- Eu fiz a vigia das proximidades – continuou, irrequieto – Há dúzias de monstros fuçando as redondezas, revirando lixo, invadindo casas e comendo pessoas. Estão se aglomerando naquele shopping. Se ainda não estiverem prontos para encontrar com Deus, entrem no carro!
Pensei em pedir mais detalhes da invasão para Boris – porque, de fato, encontros com répteis mutantes em pleno território civilizado era algo raríssimo – mas não demorou para eu ver com meus próprios olhos. Portas de vidro e vitrines foram estraçalhadas para que o enxame demoníaco pudesse passar. Era um exército de soldados venenosos e rastejantes. Não tive tempo de contar quantos, mas o inimigo tomou por completo o estacionamento.
Entrei no banco frontal do passageiro, Marquês e Darwin foram atrás. Boris pisou com fúria no acelerador. O carro desviou dos restos do portão e alcançou a rua. Nós já tínhamos montado uma pequena reunião – sobre como agiríamos, chamada de reforços, estratégias para um surto desde porte e isolamento da área – quando os faróis da caminhonete desgovernada iluminaram nossos rostos. O motorista lunático nos atingiu na esquina. Nosso veículo rodopiou com o impacto lateral. Não sei em relação ao estado dos outros, mas eu quase quebrei o braço no golpe.
São nesses momentos, a beira do abismo do sepultamento eterno, em que eu reflito sobre a razão de ter abreviado minha vida caçando essas criaturas. Minha organização contratou todos os seus membros visando o combate a tais seres, considerados pela administração como uma ameaça à segurança pública – uma espécie de inimigo nacional. Lutamos em nome do povo, mas não temos reconhecimento algum.
As operações acontecem no sigilo. O comando diz que a humanidade não está pronta para lidar com a situação. Horas, até o mais fraudulento dos políticos tem reconhecimento – então, as vezes tenho minhas dúvidas quanto a gratidão desse trabalho. Não estou falando de salário, e sim de deixar traços de valor na história humana. Preciso conversar com o meu psicólogo, ele me entende.
O zumbido na minha cabeça foi amortecido quando lembrei dos perseguidores. Minhas pernas doíam, mas não foi nada comparado ao momento em que a longa língua salivante acariciou meu rosto, e pude ver, atrás do vidro quebrado, as fileiras de dentes clamando meu sacrifício.