sábado, 20 de abril de 2019

Imunologia Suína


Sinto dores no peito. Eu queria que houvesse alguém para dizer que sinto dores no peito. Contava seus problemas, eles ouviam e te consolavam, recitando lugares-comuns moralistas ou qualquer frase extraída de filme ou livro de autoajuda. Pela minha memória a longo prazo, era essa a serventia das outras pessoas: ouvir seus problemas. Calma, digo para mim mesmo, solidão é só um estado de espírito.

Ao menos tenho terra sólida para andar. Os ursos polares, nem isso. Será que ainda existem ursos polares? Talvez eles estejam procurando sobreviventes, como eu estou. Vou encontrá-los e me tornar o rei dos ursos polares. Eu mereço um título de prestígio, sou o único ser vivo que sabe usar ferramentas e gerar fogo. Quer dizer, por enquanto, preciso pegar mais álcool e fósforo no mercado.

A radiação solar expele seus raios ultravioleta para carbonizar meu humor. Agora tenho que me preocupar com câncer de pele. É assim o dia inteiro: eu e o Sol. Digo ao Sol que sinto dores no peito, mas ele parece não ligar muito, continua me incinerando. A cidade está vazia hoje. Sem transeuntes, nem trânsito ou vida. Centros de Saúde, hospitais, leprosários, estão todos abandonados, como eu não via há tempos. Sucumbiram à gripe. Mesmo os cemitérios estão opacos, tivemos que queimar todos.

O noticiário disse que a enfermidade era uma hibridez genética da gripe humana, aviária e suína. Usando os porcos como incubadoras, o vírus Influenza H1N1 sofreu mutação, criando algo semelhante ao holocausto da Gripe Espanhola, de 1918. Começou no México, mas em poucos meses a Organização Mundial da Saúde decretou estado de emergência nível 6, alertando uma nova pandemia. As vacinas elaboradas invalidaram-se com rapidez. O vírus estava em constante evolução, procurando novos meios de transmitir-se, evitando supostas curas e ampliando o campo de espécies cuja infecção era compatível. Por está razão, era impossível isola-lo.

Meus últimos companheiros disseram que Lúcifer injetou seus próprios genes no vírus da gripe, ameaçando qualquer forma de vida no Universo. Disseram que logo a população do Reino dos Céus iria cair doente, exatamente como os mortais, por isso não adiantava morrer. Meus companheiros disseram que eu era um milagre da natureza, pois era o único que ainda não apresentava nenhum sintoma. Antes de irem para junto dos outros, disseram que eu era imune.

O chato nesse lance de extinção definitiva é que você não tem ninguém para lhe fazer companhia, nem um cachorro estúpido ou um gato sonolento. O problema dos amigos imaginários é que você precisa de imaginação para cultivá-los. Imaginação é para quem acredita em sonhos. Meu duende azulado com cabeça de tucano e cauda de tamanduá não prestava nem para perguntar se a dor no peito já havia melhorado.
A imunidade, acredito eu, é inútil agora. Os pesadelos e alucinações envolvendo criações de porcos estão debilitando minha sanidade. Exatamente nas palavras do noticiário, a peste está evoluindo. Logo, nem milagres da natureza vão escapar. Sinto os primeiros sintomas. Sinto algo dentro de mim. Sinto dores no peito.

quinta-feira, 18 de abril de 2019

Capítulo 3: “Mate o Coelho!”



Rua dos Espíritos - companheiros Nathanael e Isaac – 17h23min – 22/06/2012 (BL)


Nathanael: Ow, me ajuda aqui... Acho que parti a coluna...

Por causa do abalo físico e emocional que sofri (seqüelas de vítimas de explosões), Isaac ofereceu o ombro e serviu-me de apoio, levando o fuzil de assalto Colt M16A2 em um braço e o compadre aqui no outro. Depois de comentar como eu tinha engordado, fez uma breve relação dos utilitários que trouxe do jipe.

Isaac: Conchas de munição para Mosin, M16 e 9mm; 1 granada básica, 1 incendiária e 2 de fumaça; faca de sobrevivência, espingarda calibre 12, revolver .38 e uma arma de choque (modificada para gerar um descarga elétrica mortal de 50 volts); e sal grosso para espantar maus presságios.

Ha-ha. Caramba, como estou feliz pelo Isaac ter vindo.

Nathanael: Bom, isso deve servir... Para a primeira leva.

Isaac: Deus queira que sirva. Pelo menos até chegarmos na rua Arco-Íris.

Nathanael: Deus, nossas armas e nosso instinto de sobrevivência queiram que sirva.

Saímos pela cratera da petshop em passos lentos de casal – esquivando do fogo e dos destroços – mas logo nos desgrudamos para entrar em posição de combate. Atraídos pela explosão, um policial e um padeiro suplicavam um pouco de nutrientes humanos frescos.

Isaac: Não demoraram dessa vez...

Isaac brandiu a M16 e impeliu uma agressiva nevasca de balas contra o oficial – fazendo-o sentir cada um dos 15 disparos p/ segundo da arma. Seu corpo foi (como se diz na Mecânica de Usinagem) completamente rosquiado, e o monstro se transformou num tipo de escultura concretista, desmembrando-se ao se chocar com o solo. Meu Mosin Nagant não teve dificuldade em aprontar o padeiro, e aquelas roupas branquinhas dele. Acabou muito rápido. Isaac fez sinal de “não temos mais tempo” (junta-se o dedo indicador com o pai-de-todos e se começa a dar “tapas” no final do lado superior do antebraço esquerdo, onde começa a mão e também onde colocamos os relógios de pulso – a agilidade com que se bate depende do desespero da situação). Distribuímos os equipamentos e viramos a esquina na av. Jardim Encantado (por onde eu tinha vindo).




Av. Jardim Encantado - companheiros Nathanael e Isaac – 17h31min – 22/06/2012 (BL)

Olhei a frente; minhas pupilas dilataram. Uma grande massa de névoa tomou toda a extensão da rua. A morbidez de uma “avenida fantasma”. Era impossível visualizar o resto do caminho.

Nathanael: Vamos encontrar um atalho, tenho um péssimo pressentimento em seguir por ai.

Isaac: Não há tempo para procurar atalhos. E o que a neblina pode fazer de mais? Nos deixar cegos?

Isaac prosseguiu. Estes equívocos acontecem, geralmente, porque algumas vezes nos preocupamos tanto com os horários estipulados pelo Coronel que esquecemos dos cuidados mais básicos. Então quer dizer que todos que morrem são culpa dele... Velhote miserável... Em resposta a aproximação, uma meia-dúzia de infectados materializaram-se do vácuo e se arremessaram no companheiro.

Nathanael: Isaac!!

Um impulso. Empunhei o rifle e mandei 4 disparos consecutivos. Acredito que foi meu recorde de tiros no menor espaço se tempo: atirei e ejetei o cartucho, atirei e ejetei o cartucho, atirei e ejetei, atirei e ejetei. Derrubei exatos 4 malditos que tentavam cercar o camarada. Isaac também não foi nenhum servo de pata quebrada. Metralhou um estudante e, um pouco antes de ser agarrado pelo que me pareceu um mercador ambulante, sacou a granada e encaixou na boca do infectado, retornando o punho com o pino vital junto. Realmente, Isaac aprendeu uns truques bem úteis em seus tempos de guarda rodoviário. A criatura, desorientada com a incompreendida perca de movimento do maxilar, foi alvo fácil da coronhada que se seguia, o jogando de volta ao ninho de seres amaldiçoados de onde veio. Isaac saltou para sair da área de alcance da explosão.

BLOOM!!

Por alguns estantes, uma pequena chuva de tecidos orgânicos deu cor à neblina. A melhor aula de anatomia que tive na vida. Desguardamos apressadamente nossos respectivos M.A.P.B.s (Manto Anti-Perigo Biológico) – uma espécie de capa de plástico resistente e antiaderente, usada em casos como este, para minimizar o risco de contagio quando o inimigo é feito em pedaços; em batalhas de curta distância, onde há exposição direta com a praga, entre outras utilidades – e nos cobrimos. Depois, atacamos os sobreviventes sem misericórdia.




Nathanael: Mandou bem, Isaac!

Isaac: Que nada. O mágico de Oz aqui é você.

Eles não estavam em grande número. Ficamos nos limites da área nebulosa atirando, nos preocupando apenas em limpar o percurso. Quando, subitamente, a silhueta de dezenas deles surge na palidez do cenário, aproximando-se feitos espectros.

Nathanael: Não temos munição suficiente. Agora sim precisamos de um atalho.

Vi Isaac apanhar a arma de choque. Será que o contato com a morte iminente o enlouqueceu? Então eu entendi. A névoa estava incrivelmente densa; o acumulo pluviométrico parecia miragem. Ficávamos encharcados só de permanecer ali.

Isaac: Saia da neblina!

Quebrou o gatilho da arma de choque e lançou contra os inimigos. Houve uma reação em cadeia; a descarga elétrica consumiu toda a rua. Um ataque certeiro do Deus do Trovão. Só ouvimos as carcaças capotando no solo, vitimas da eletrocussão. Esperamos a energia se dissipar (se “transformar”, segundo os conceitos físicos) para continuar o trajeto. As circunstâncias ficaram bem tranqüilas depois do inconveniente lá atrás. Avistei um helicóptero acidentado nas ruínas de uma residência, calunia que passou em branco antes – devia mesmo estar delirante.

Ouço o bater de asas. O gargarejo inconfundível ecoa na imensidão da cidade. Aquele lugar estava empestado de pombas: ocultas nas telhas das casas, estáticas na fiação dos postes ou mesmo procurando farelos de carne no asfalto. No começo da infestação, acreditava-se que estas aves eram as principais transmissoras da praga, graças ao atormentador aumento populacional aviário que houve antes da epidemia. Mas esta teoria foi refutada quando se reparou na habilidade da doença em alterar quaisquer organismos orgânicos e transformá-los em agentes propagadores da contaminação.




Isaac: A melhor opção é dobrar na próxima esquerda, logo no final da avenida.

Nathanael: Sei, é o mesmo caminho que eu fiz.

Isaac: Hum... Você ainda não disse porque fugiu com a cauda entre as patas na rua Arco-Íris.

Nathanael: Eu não fugi seu imbecil, eu salvei todos vocês! Bando de miseráveis ingratos...

Isaac: Então... Conte a história...

Nathanael: Não consigo explicar nessas condições; te conto quando chegarmos no jipe.

Estávamos tentando não perder o passo, quando senti uma entidade macabra respirando no meu cangote. Escutei um sussurro diretamente no meu tímpano.

“Nada é real...”

Virei-me, já com o rifle em punho e pronto para detonar os miolos do quer que seja o desgraçado. Mas não havia ninguém atrás de mim.

Isaac: O que houve?

Nathanael: Nada. Pensei ter ouvido alguma coisa.

Aconteceu um fato similar na petshop.

Isaac: Não temos tempo para paranóias. Se bobear a equipe de resgate já está com o resto do grupo.

Viramos na última rua do J.E., seguindo na direção do objetivo.




Rua dos Enforcados - companheiros Nathanael e Isaac – 17h42min – 22/06/2012 (BL)

Como costumava dizer os habitantes genocídados de Bela Linhagem: “nova rua, novos ares”! Nos deparamos com uma paisagem deserta, muito mais confortável de se andar. Logo, escutamos uma inquietação dentro do açougue Primavera, à nossa direita. Olhamos pela janela de exibição, e o que vimos foi um tanto suspirante.

Isaac: Cães...

Um vulto quadrúpede nos farejou pela porta da frente, semi-aberta, e a empurrou com o focinho. O rottweiler, ensangüentado e mastigando uma costela de vaca, saiu para nos olhar melhor. Foi seguido por um pastor alemão de orelha decepada e um gigantesco leonberg – o “cão-urso”. Suas garras mal-aparadas estralavam no piso da calçada. O leonberg (que identifiquei como o líder da matilha) vidrou os globos oculares em minha pessoa, e latiu – por pouco não grunhiu um rugido. Os malditos avançaram contra nós. Eu já estava com o rifle aposto, mas – semelhante à desesperança do esvair das águas em época de seca – o Mosin enguiçou. Isaac, por sua vez, atirou, mas no terceiro disparo automático a munição esgotou-se (ele sempre esquece de prestar atenção na recarga; hábito que cultivamos para não ter mortes estúpidas como essa); e ainda por cima não acertou nada. As bocas famintas – cheias de caninos enegrecidos pelo sangue e salivando o desejo por nossas entranhas – estavam tão próximas que já podia sentir o gosto da mordida fatal na garganta. Angustiante.

Esquivei por um triz do líder e atingi o rottweiler com uma coronhada no nariz, o atordoando levemente. Isaac puxou a faca de sobrevivência e, defendendo-se da investida como um espadachim, degolou o pastor alemão. Hora do segundo turno. Deixei o Nagant de lado e estendi a calibre 12. O rottweiler tinha se recobrado e preparava um novo ataque. Baleei o raio de seu corpo, o explodindo ao meio. Curvei-me para focar o último alvo, e o líder salta para me abocanhar. Por pouco, consigo por a espingarda entre meu rosto e os dentes infecciosos, mas a força do impacto joga-me no chão, com o vira-lata sobre mim. A única coisa entre eu e ele era a 12, mas pude sonorizar a arma rachando-se lentamente com a força da grande mandíbula.

Isaac: Agüente firme Nathanael!

Isaac lança a faca contra meu atacante – numa manobra que mais me pareceu número de artista de circo – perfurando seu pescoço. Mas o cachorro ainda estava vivo. O animal começou a se debater, me mandando a alguns metros. Esqueceu-me completamente e partiu para cima de Isaac. Deu uma cambalhota ágil e agarrei o Mosin. Desemperrei a antiguidade o mais rápido que pude e atirei, desconectando a cabeça do leonberg deste mundo. Mal recuperei o fôlego e Isaac veio me apressar.

Isaac: Levante-se, estamos quase lá.

Pobre dos animais: tive mais pena de matá-los do que muitos ex-seres humanos.




A rua Dos Enforcados compunha-se de cinco quarteirões médios, e dava direto na rua Arco-Íris. Donatello e Thomas devem ter ouvido muito bem o “bang-bang”. Tal fato incrementou uns dois pontos no meu medidor de animo. Continuamos a caminhada; a nevoa era praticamente inexistente agora. De repente, uma música começou a tocar. Tinha uma tonalidade clássica, e vinha de logo à frente. Não demorei a descobrir: era a famosa 9º sinfonia de Beethoven, mais perceptível a cada passo.

Isaac: Acha que é algum sinal de outros sobreviventes?

Nathanael: Talvez, mas temos que ter cuidado. Podem ser membros da Q.E. também.

Chegamos à fonte do som: uma caixa de música aberta, ecoando a melodia encima de uma pilha de mantimentos. De relance, pensei que fosse alucinação. Equipamentos bem úteis, como kits médicos, armas de contusão e perfuração, comida industrial, remédios e munição, amarrados juntos em uma corda velha e suja. Tentei imaginar o que aquele tentador oásis estava fazendo bem no meio da rua.

Isaac: Quem em sã consciência deixaria itens tão cruciais empoeirando em campo aberto?

Nathanael: Estranho, né? Deu até a impressão de que largaram para gente.

Acheguei na pilha e fechei a caixa de música, para não chamar nenhuma atenção indesejada. Mal tirei a mão do objeto, um cheiro regurgitante chegou as minhas narinas. Lembrava... Decomposição. No mesmo instante, um ser humanóide ergueu-se de trás dos mantimentos. Sua pele estava pútrida, decompositores esgueiravam por suas roupas mofadas, e – em certos pontos – dava para visualizar seus ossos desgastados e até alguns órgãos internos. Um morto-vivo? Tinha algo brilhante na mão; era uma tesoura de alfaiate. Ele tentou cortar minha jugular. Agarrei o braço do maldito no ato; ele abria e fechava a tesoura, esperando ver meu sangue jorrar. Parti a ligação apodrecida da junta, tornando o membro invalido. Com a primeira tentativa fracassada, o filho da mãe deveria tentar me morder. Não tinha espaço nem meio de usar o Mosin. Soltei o braço, cerrei o punho e esmurrei com toda força a cara do desgraçado. Graças aos céus, somos instruídos a usar luvas durante as missões. Enquanto se contorcia no chão, mandei o tiro de misericórdia.

Isaac: Quando foi que eles aprenderam a usar ferramentas?

Mais alguns brotaram das redondezas, saídos das casas, carros e de esconderijos improvisados. Para nosso terror, eles levavam instrumentos um tanto ameaçadores consigo: facões, martelos, inchadas, chaves de fenda, ceifas, galhos de árvore, pedras e outros – não havia um padrão definido nos armamentos. Alguns até enfeitaram-se com proteções na cabeça (capacetes de motociclista, operário, soldado e até um elmo de armadura medieval). Totalizavam 12 indivíduos. Neste momento me caiu a ficha: era uma emboscada.

Nathanael: É uma armadilha! Os mantimentos e tudo mais... Eles nos cercaram!

Bom, não vamos nos jogar na graça do desespero. Talvez eles tenham aprendido umas artimanhas novas, mas ainda são os velhos inimigos idiotas que costumavamos brincar de tiro-ao-alvo anteriormente. Atirei no capacete de motociclista – só para testar – e o projétil do meu rifle atravessou sem problemas a proteção. Poderíamos ganhar aquela batalha, era apenas questão de matar todos antes que tivessem a chance de usar seus brinquedinhos. Seria difícil, o espaço era mínimo e eles não perderam tempo em nos pastorear feito ovelhas. Teríamos somente uma chance.

Nathanael: Isaac, memorize os ângulos de cada alvo no seu campo de visão.

Isaac: Já memorizei.

Nathanael: Respire fundo, feche os olhos e não perca a atenção por nada nesse mundo...

Fiquei de costas para Isaac. Tirei a granada de fumaça do estoque e puxei o pino. Joguei a menos um metro de nós. A nuvem intoxicante nos cobriu e cegou os infectados.

Nathanael: Atire!

Uma saraiva de balas do Mosin Nagant e da Colt M16A2 cortou a fumaça. As balas esvoaçavam pelo ar, aparentemente às escuras. Quando o efeito atordoante passou, não havia nenhum inimigo de pé. Vitória!




Agora você reflete um pouco, e, de súbito, desaprova tudo o que viu até aqui: “2 seres-humanos comuns derrotarem sem problemas uma multidão de demônios seis vezes mais numerosos? Marmelada!” Deixe-me explicar. Esse é, sempre foi e sempre será o derradeiro fim da L.E.: recrutar, organizar, sustentar e treinar soldados providos de conhecimento e capacidade física necessários para sobreviver as condições extremas do novo cenário global. E aqui está o fruto desse trabalho.

Nathanael: Acho que foi uma das batalhas mais gloriosas que tivemos até hoje. Pensei que não iríamos conseguir, mas no último estante viramos o jogo e mandamos todos para o Inferno! Vou levar esses malditos para empalhar no dormitório, como um troféu...

Percebi que Isaac não estava escutando, sua atenção fora concentrada em algo detrás do meu ombro. Aterrador: uma horda de infectados (por volta de 40 para cima) seguiam nosso rastro pela Rua Dos Enforcados. Vinham numa celeridade assombrosa, alguns pareciam até velocistas. Não pensei em outra coisa...

Nathanael: Corre!

Não teríamos nenhuma chance num enfrentamento direto. A última esperança era rezar para os reforços ainda estiverem a nossa espera. Correndo como uma zebra prestes a ser encerrada por um bando de leões, tentei manter um dialogo com Isaac.

Nathanael: Vamos correr até a rua Arco-Íris e esperar que tenha um veículo de escape aprontado para nossa chegada.

Isaac: Se trouxermos os amaldiçoados até a equipe de resgate vamos minar a fuga.

Nathanael: Então, o que sugere?

Isaac diminui o ritmo e olhou ao redor.

Isaac: O posto de gasolina...

Estávamos a dois quarteirões do ponto de encontro, quando nos separamos. Isaac desviou na direção do Posto de Gasolina Rufus.

Isaac: Continue, e não pare de correr!

Parei e gritei.

Nathanael: O que você está fazendo seu idiota!!?

Parar naquele instante era o mesmo que atirar contra a própria cabeça. A distância entre nós e os inimigos caia numa escala alarmante.

Isaac: Está operação não chegou totalmente ao abismo da improvisação. Temos o “Sósia” ainda.

Sósia. Uma máquina de projeção portátil, cria um vídeo de exibição que cópia a locomoção humana (uma cena animada que se repete, mostrando uma pessoa em movimento), adicionando alguns efeitos de luz estilo discoteca para deixar a isca mais atrativa. Como o M.A.P.B., é uma invenção da Equipe de Artigos Práticos (E.A.P.). Útil para uma evasiva, mas pode atrair outras centenas deles. E a bateria tem vida curta.

Meu companheiro passou pelo abastecimento – correndo o máximo que seu corpo mortal lhe permitia – e parou na frente da tela onde faziam anúncios. Ofegante, posicionou o aparelho no chão. Baleei alguns cretinos que cruzaram as bordas do posto, cunhando tempo para Isaac, apesar de não entender onde o estabelecimento e todo esse atraso se encaixavam no plano. Mais quatro disparos, e minha munição acabaria. Isaac acionou o Sósia, e ele funcionou como deveria. O guarda rodoviário absorveu o máximo de oxigênio que pode, tentando compensar o esgotamento da adrenalina, e circundou os infectados que invadiram o posto. Galopou até mim, exausto. Como o previsto, os monstros passaram a nos ignorar, chocando mãos, braços, peitos e cabeças contra a parede na tentativa de devorar a presa imaginária. Em segundos, o posto enfartou de monstros, amontoando-se uns nos outros, chegando até a bloquear o “holograma”.

Isaac: Me passa a granada incendiária.

Humm... Entendi o plano...

Isaac, com a destreza de um arqueiro, lança a granada por cerca de 20m, aterrissando precisamente no estoque de gasolina. Um brilho incandescente reflete nos rostos dos infectados. Uma supernova! O globo de fogo engole tudo que vê pela frente, desaparecendo com os alvos. Pobres condenados...




Finalmente. A rua Arco-Íris e a salvação definitiva já eram realidade. Só queria chegar, receber uma muito bem dada “boas-vindas” da Equipe de Desinfecção, comer tudo o que tinha direito no refeitório e depois dormir até umas 14:00h do dia seguinte. A missão falhou, pode até ser, mas isso é um mérito merecedor depois de matar tantos %$&¨& em um dia só. Fantasiar é tão bom, mas aquela luz radiante de esperança apagou-se quando avistei meus pesadelos manifestarem-se fisicamente, de novo. Saído de dentro de uma loja de conveniências, um velho amigo: o cachorro Cabeça-de-Metal. Ou estava ficando louco, ou ele existia de verdade. Bom, vamos ver por um ponto de vista mais psiquiátrico: talvez a razão do meu subconsciente pregar a mesma peça em mim seria porque eu insisto nos mesmos maus hábitos de sempre, nunca os abandonando por completo. Ah, que se dane. Cabeça-de-Metal estava vindo na minha direção; certamente iria encenar passo-a-passo o sonho, como da última vez – mas eu não planejo dormir no ponto agora. Vou limpar o miserável dos meus sonhos de uma vez por todas...

Nathanael: Pesadelos... Nunca mais...

Isaac: Com quem você está falando?

O pus na mira do Mosin e nem pensei muito antes de atirar. Ele congelou, como um filme ao ser pausado. Um buraco negro imergiu da lateral do seu corpo, crescendo até engoli-lo completamente. Depois a fissura engoliu a si mesma e desapareceu. Após o fenômeno, sobrou somente uma leve distorção aérea. Estou livre!

Isaac: Ainda bem que munição cai do céu, né? Daí você pode ficar atirando no vento a vontade...

Acho que está na hora de contar a Isaac o motivo de eu ter me separado do grupo. Ele vai acreditar, é meu amigo, horas...




Um som repentino entoa do comunicador.

Comunicador: Base da Arca de Nóe falando. H. S., você está na escuta?

Que interrupção é essa agora?

Comunicado/Voz nº1: Queremos a confirmação do Projeto Biosfera. H.S., você está na escuta?

Isaac: Acho que você interceptou alguma coisa...

Voz nº1: H.S., você está na escuta?

Voz nº2: H.S. ouvindo alto e claro. Projeto Biosfera finalizado com êxito. É bom escutar sua voz, dr. Jerusalém...

Voz nº1: Excelente. Também é bom te ouvir, Henry. Terá uma equipe te aguardando no forte de segurança “Redenção”, na rua Serpente, 105, amanhã às 15h. Estamos ansiosos pelos resultados da pesquisa. Cambio, desligo.

Humm... Forte Redenção... Será outra tentativa de organização social humana?

Isaac: Gente esquisita...




Senti uma vibração, erguendo meus fios da pele.

Nathanael: Magnetismo...

Apliquei o “Pendente Mágico” (P.M., também criação da E.A.P.), um pingente de atração nula sensível tanto a cargas magnéticas positivas quanto negativas. O usamos para caçar Magnetitas, um minério cuja mera presença consegue afastar os infectados, como um exorcizador ou um amuleto de boa sorte. Os pioneiros no uso de Magnetita na luta contra a praga foram às tropas norte-americanas (vindas ao Brasil para ajudar o governo e tentar conter o início da infestação) que - apesar de terem sido massacrados humilhantemente e a única ajuda que nos deram foi diminuir ainda mais o número de sobreviventes – deixaram armas, equipamentos e alguns truques interessantes. Não compreendemos exatamente como funciona nem os efeitos que a Magnetita causa nos inimigos, mas onde o minério estiver concentrado simplesmente não há monstros a vista. E é por tal razão que estas rochas cintilantes são de extrema importância para a L.E.: nossa base as mantém em pontos estratégicos, para espantar amaldiçoados de todas as direções. Mesmo os membros (como eu, Isaac, Donatello e Thomas) carregam um pequeno fragmento conosco (incorporado na P.M.), mas este só é útil no caso de insetos e animais menores. Como nunca foi encontrado Magnetita em território brasileiro, a única chance é procurar pelas abandonadas na época de resistência, e deixar qualquer oportunidade partir é estupidez.

O Pendente Mágico, induzido pelo magnetismo, move-se como se tivesse vida própria. Por se tratar de um pingente, a vantagem (além da obvia aplicação de levar em volta do pescoço) é que se tem uma noção da altitude em que a rocha se encontra, fato impossível com uma bússola (antigo método de encontrar o minério). O P.M. apontou direto para a farmácia homeopática Alquimia. Alakazan! Perfeito, mato dois coelhos com um único tiro. Posso usar isso como desculpa para pegar a lembrançinha de Maria, encontrada somente em farmácias de manipulação como essa, e ter meu belo prêmio. Tudo isso valeu a pena no final das contas.

Isaac: Onde está indo?

Nathanael: Você não percebeu? O pendente reagiu, sabe o que significa...

Isaac: Esquece, é isso ou nossas vidas.

Nathanael: Isaac, você só pode estar louco. Sabe como é importante para nossa sobrevivência...

Ignorei Isaac e segui o P.M.

Isaac: Não dá tempo!!!

Captei um zunido, tão intenso que me fez parar. Vinha naquela direção, rápido. Muito rápido. Um objeto voador não identificado rasgou o ar entre eu e Isaac, por pouco não nos levando junto. Colidiu com a farmácia, a despedaçando em uma deflagração explosiva.





Rua Arco-Íris - companheiros Donatello e Thomas – 18h05min – 22/06/2012 (BL)

As mãos de Thomas tremiam, ele não conseguia focar o infectado que vagava fora do veículo, a sua procura. O membro chorava e sussurrava:

Thomas: Eu vou morrer... Eu vou morrer... Eu vou morrer... Eu...

Os indícios no asfalto declaravam um terrível derramamento de sangue que ocorrera ali. O infectado se aproxima do jipe, percebendo a agitação dentro do carro. Subitamente, sua cabeça estilha-se. O atirador apropinquou-se e bateu na janela de Thomas.

Donatello: O que eu falei em hesitar?

Thomas: E daí? Essa nunca foi minha função mesmo... Se os devidos encarregados não estão aqui, não é culpa minha...

Donatello: Como um imprestável como você ainda está vivo?

Thomas: Ah... Donatello... Atrás de você...

Donatello vira-se, trombando com outro infectado, de braços estendidos, que iria agarrá-lo em menos de um segundo. Em um reflexo astuto, o companheiro neutraliza o inimigo com uma “Benção” (golpe de capoeira que consiste em um chute frontal direto no abdômen do adversário, esticando a perna em linha reta, com implicações devastadoras; podendo até desencadear hemorragia interna). A criatura não tem mais condições para lutar.

Thomas: Caramba Donatello, você é demais!!

Em resposta ao elogio, Donatello bufou.

Donatello: Só queria saber de onde saiu tantos deles. Quando chegamos não havia nenhum, e demoraram em vir; como se estivesse esperando o grupo se separar.

Thomas: Olhe, há mais vindo...

11 malditos andavam sem pressa, seguros de que conseguiriam abater Donatello e o inofensivo Thomas com poucas perdas.

Donatello: Droga, não tenho mais munição.

Thomas: Não conte seu ponto fraco pra eles...

Donatello: Me passa o rifle de assalto. Ele não serve pra nada na sua mão.

Foi quando uma onda de disparos iniciou-se na retaguarda dos monstros, os pegando desprevenidos. Caíram um a um, como se estivem na linha de fuzilamento. Donatello esboçou seu primeiro sorriso do dia.

Donatello: Thomas... A equipe de resgate chegou!!





Rua dos Enforcados - companheiros Nathanael e Isaac – 18h10min – 22/06/2012 (BL)

Deslumbramos as ruínas da farmácia.

Isaac: Lança-foguetes?

Isaac estava certo; aquilo foi obra de munição anti-blindagem, e deveria ter acertado na gente. Uma lista de suposto responsáveis me veio à mente. Suei em frio. As figuras avermelhadas esgueiravam em um caminhar tático, ágil, mantendo-se agachados e se escondendo atrás de qualquer suposta barreira protetora, prontos para um ataque a qualquer instante. Vestiam um uniforme esteticamente similar às vestimentas do Exército Brasileiro, só que vermelho. Não o vermelho convencional, mas sim um vermelho mais forte, mais vivo, um vermelho cor de sangue. O vermelho-escarlate.

Nathanael: A Quadrilha Escarlate...

A Quadrilha Escarlate (Q.E.). Tudo começou no pré-Apocalipse. No Brasil, era o estouro de um movimento cultural chamado “Martelo”. Seduzidos por uma nova linha de pensamentos que alcançou as mídias mais populares – literatura, música, novelas, filmes, etc – camadas baixas da população começaram a adotar uma postura “comunista”. Diziam o Brasil ser uma grotesca célula corrupta que aos poucos se desintegraria, levando o povo junto para o “naufrágio”. A única esperança para escapar das garras da crise internacional seria por em prática um sistema de governo alternativo. Os devotos do movimento provocavam agressões diretamente contra o liberalismo, organizando verdadeiros ataques terroristas a empresas internacionais ou com relações no exterior. O número de seguidores foi crescendo, quando o fim do mundo impediu que o partido de esquerda assumisse.

Os remanescentes de Bela Linhagem que sobreviveram ao Holocausto, organizaram um grupo parecido com a L.E., também com o intuito de exterminar as formas de vida derivadas da praga e reerguer um novo mundo regido pelo poder centralizado do Martelo. O problema é que a “Q.E.” – como se auto-denominam – obriga a todos que queiram se afiliar a beijar a mão do totalitarismo, fato que o Coronel se recusa. Foi criado uma inimizade entre nós, e eles abrem fogo quando reconhecem qualquer membro da Legião da Esperança. A Q.E. é muito mais numerosa que nós, por aceitarem qualquer um (diferente da lei do Coronel, que exige do recruta alguma habilidade especial que proporcione aumentos no desempenho do grupo).

Mas em compensação, temos soldados muito melhor capacitados, como ocorreu na guerra dos 300, onde milhares de escravos persas que mal sabiam manejar uma espada enfrentaram algumas centenas de guerreiros bem dispostos. Outro detalhe que nos garante mais alguns pontos é que os membros da L.E. não são nem de longe descartáveis, diferente da Q.E., nem pensando duas vezes antes de sacrificar uma armada inteira em missões suicidas. Por esse motivo todos escutam quietos as arrogâncias do nosso líder, pois há destinos muito piores por ai...




Contei 3 indivíduos, dois portando AK-47´s e um carregando a arma de artilharia portátil que quase nos trucidou, a RPG-7. Fizeram de um carro esportivo sua defesa e nos colocaram no tiroteio cruzado.

Membro da Q.E. nº1: Hoje é o dia que conheceram a outra vida, capitalistas corruptos!

Membro da Q.E. nº2: Vamos acabar logo com isso, o Diabo da Colina está nas redondezas.

Diabo da Colina? E quem seria esse?

Eu e Isaac nos jogamos no chão, para não perder as massas cinzentas no coquetel balístico mortífero que estremeceu o espaço sobre nossas cabeças. Por sorte havia uma van próxima, ficando entre nós e a morte. Os dois atirados não desistiram e mantiveram os gatilhos pressionados, enrugando todo o veículo. Ou eles estavam realmente desesperados para nos matar, ou tinham munição para vender, presentear e por de enfeite.

Isaac: A van não vai agüentar por muito tempo.

Nos rastejamos sob a chuva de projéteis de AK´s, se afastando o máximo da van. Como Isaac previu, ela cedeu a tortura, explodindo em uma espiral de fuligem. Caramba, hoje está tudo indo pelos ares. Ergui o corpo de leve para localizar os comunistas. O bucaneiro recarregava sua RPG, e não iria demorar com o serviço. Lancei a última granada de fumaça, desfocando a mira inimiga. Corri até poder visualizá-los novamente.

M.Q.E. nº2: Ele foi pela direita!

Iniciam outra onda de tiros. Lancei-me atrás de um Fusca; pude sentir as balas contornando meu corpo; passei perto de atravessar o rio das almas. Droga, não acreditei que tivessem um tempo de reação tão curto, devem ter recebido um treinamento decente nesses últimos tempos. Eles mantêm a mesma estratégia da van, sem parar de atirar. Seus olhos brilham com os flashs da boca de fogo das armas, um deles lambe os beiços, querendo muito ver meu funeral. Meus Deus, o Fusca está se desmaterializando, o impacto dos disparos cada vez mais aconchegado, o carro não vai agüentar nem mais um segundo... O que eu faço?

M.Q.E. nº1: Aquele parasita já era...

Eu me precipitei. O mesmo óbito de inúmeros falecidos membros da L.E.: precipitação. Então, é isso? Eu vou morrer aqui? ... O silêncio...

M.Q.E. nº2: 1 inimigo abatido.

M.Q.E. nº1: Não pare de atirar!

M.Q.E. nº3: Olhem! O outro está vindo pela esquerda!

Isaac: Morram seus desgraçados!!!

Isaac metralha feito um selvagem, mas os ágeis comunistas protegem-se na barricada. Eles, por sua vez, mandam a mesma rotina destrutiva para Isaac, que consegue escapar milagrosamente em um apinhado de destroços. Era minha chance. Salto em cima do capô do que restou do Fusca e elevo o Nagant. Convirjo a mira nos miseráveis. O soldado da RPG apontava diretamente para mim, com a horrenda arma em punho. Um duelo do Velho Oeste americano, o mais rápido prevalecerá. Muito lento! Acerto a munição anti-blindagem ainda no cano da artilharia, mandando todos os Q.E.s para a lista de espera do Purgatório.




Nathanael: Yeah cara! Conseguimos!

Isaac se aproxima enquanto eu saltitava de alegria feito uma criança no parque.

Isaac: Não pareceu que eles estavam fugindo de alguma coisa?

Nathanael: É... Eles citaram um tal de Diabo da Col...

Que sensação era essa? Como se uma atmosfera negra imergisse do além e enroscasse os tentáculos em meu pescoço. Tinha algo vindo. O projétil estilhaça-se no peito de Isaac, o fazendo recuar. Ele cai de joelhos, sem entender o que o acertou.

Nathanael: Isaac!!

O seguro antes de espatifar no asfalto. Ele estava se desfazendo em sangue, teria que estacar o ferimento. Rasguei um tecido da minha roupa e amarrei em volta do seu dorso. Apertei o máximo para dar alguma chance a Isaac.

Foi quando ele chegou. Andar desapresado, porém firme, como uma continência. Um casaco todo cheio de emendas cobria a fisionomia sombria do ser. Ainda pairava uma fina linha de fumaça do cano do rifle. Um rifle de longo alcance. Estava diante do assassino de Isaac. Ele não estava apenas olhando diretamente nos meus olhos – estava frisando a minha essência, me analisando física, mental e psiquicamente. O rosto levemente inclinado para o solo, os olhos ligeiramente içados para cima. Aquele olhar, não era humano, não demonstrava nenhuma emoção, um pulso elétrico sentimental sequer. Era o olhar de um predador, a legitima expressão de um psicopata. Só havia uma pessoa que se encaixava no perfil...

Nathanael: Desgraçado... Você o matou!

Não empunhava o rifle, ao contrário, quase o arrastava no chão. Simplesmente não me via como uma ameaça. Me levantei. Ele veio para terminar o serviço, e eu teria que matá-lo antes de levar Isaac a equipe de resgate.

Nathanael: É você, não é? O maldito lunático que vem matando os entes da mesma espécie... Santacruz...

Ele parou, mas permaneceu em silêncio me encarando.

Nathanael: Preste atenção em volta. Aqui vai ser seu túmulo. É melhor começar a pensar muito bem como tem levado a sua vida, porque essa é a última oportunidade para se redimir...

Santacruz permaneceu indiferente as minhas palavras. Segurei firme o Mosin. Uma pequena garoa desce do céu, umedecendo o campo de batalha...


Base da L.E. – Coronel Henrique – 18h22min – 22/06/2012 (BL)

Coronel: O fenômeno climático...


Capítulo 2: “Peixes no Aquário e o Fenômeno Climático”




A única coisa que conseguia distinguir era a finalidade do local; uma espécie de cemitério, antigo e bem tradicional. Podia ouvir pessoas sussurrando nas proximidades. A ausência de luz e a espessa camada de névoa embaçavam minha visão, mas podia ver 2 ou 3 m a frente graças a luminária lunar. Sentia uma inquietação ao redor, vários corpos se locomovendo caoticamente, como se bailassem uns com os outros. Mas minhas retinas oculares não captavam nenhum movimento, somente a incerteza da escuridão.

Foi quando um vulto desacoplou-se das trevas e se esgueirou até mim. A Lua ilumina o que me parecia ser um cão, de pelagem suja e surrada, usando uma máscara de ferro, projetada sobre medida para sua cabeça. A máscara não possuía nenhum orifício, nem para olhar ou respirar ou alimentar ou quer que seja, e parecia estar parafusada em seu pescoço. O animal - ou qualquer que fora sua definição biológica - me encarou com sua face metálica e enferrujada por alguns estantes, e depois latiu; um latido que mais parecia uma lamúria metalizada, como se suas cordas vogais se contorcessem e ele engasgasse com o próprio gruído. Apesar da falta de cortesia do cachorro, aquilo me pareceu uma tentativa de comunicação. Logo após, o cão deu meia-volta e retornou para a penumbra.


Base da Legião da Esperança (L.E.) - Dormitório masculino (2º andar) - 05h28min - 22/06/2012 (BL)
Acordo com um som agudo e animalesco no meu ouvido. O maldito galo - inconfundivelmente, a ave da granja do Nicholas - cantarolava suas noções básicas de melodia novamente; celebrando outro nascer do Sol com sua voz desafinada. O mesmo ritual executado com precisão horária toda bendita manhã - como se houvesse algo para se comemorar no começo de cada dia. Tenho vontade de lançá-lo além dos muros, ai sim o cretino ia ter um motivo pra cantar. Bom, pensando bem, talvez o pássaro terrestre esteja certo, e eu também deveria agradecer por estar vivo. Às vezes imagino se habitar a pós-humanidade não passe de um ato de sorte, como jogar dados ao acaso. E com certeza é muito melhor acordar com o "cocoricó" do que com o despertador oficial - soado daqui exatos 30 minutos - que mais parece um alarme de incêndio. Tudo bem, eu aceito a existência do galo.

Eu sei, o sonho foi muito estranho, mas tais visões se tornaram tão freqüentes que deixei de dar importância. Deve ser apenas uma loucura colateral decorrente de viver neste inferno - como Deus não conseguiu matar todos nós no dia do Juízo Final, inventou de atacar nossas mentes, para nos induzir a terminar seu trabalho. He he, espero nunca soltar esses pensamentos perto do padre, não agüento mais ouvir sermão. Sabe como é, a gente se torna verdadeiros exemplos de religiosidade em tempos de crise, mas depois de rezar até ficar rouco e nada mudar, nenhum vento de salvação surgir pelas linhas do horizonte, perdemos um pouco da fé. É o estado de ceticismo - quando você não acredita mais em nada - e te digo, pobre coitado de quem terminar assim - como eu. Disposição e vontade de viver são essenciais para a sobrevivência; essa é uma das funções da religião, manter as pessoas animadas. Exatamente por isso que criaram as crenças, para nos manter alegres e podermos nos auto-trucidar com mais eficiência. Droga, espero que o padre nunca ouça isso.

Isaac: Nathanael, você está acordado?

Desvio o olhar do teto para encarar Isaac. Ele estava jogando grãos de ração no aquário, alimentando seus amados peixes.

Isaac: Notei sua inquietação ai na cama.

Isaac era guarda rodoviário antes de tudo isso; ele conhece a cidade de ponta-a-ponta e ao avesso. Nunca o vejo acordar tarde, e às vezes penso se ele realmente dorme de noite. Por esta razão nós formamos a E.B.M. (Equipe de Busca e Mantimentos), porque acordamos cedo. Bem cedo, antes de todo o resto da L.E.; e a busca por mantimentos não tem hora. O povo sempre precisa de alguma coisa; os outros setores - desde o Centro Médico até a Geração de Energia - ficam em coma sem nossos serviços. Donatello, nosso indispensável mecânico, deve estar na capela orando por sua família, e Thomas, ex-funcionário da Vigilância Sanitária, tragando um cigarro em algum lugar. Acredito que, no requisito insônia, apenas os companheiros da Equipe de Vigia e Defesa ganham de nós, mas isso é outra história.

Nathanel: Não se preocupe, eu estava prestes a voltar a dormir.

Isaac: O.K., mas a Maria quer falar com você...

Maria!!? O que ela quer comigo agora? Da última vez que conversei com ela eu quase morri em uma infestação...

Nathanael: A-ah, beleza... Valeu por avisar.

Levando com certa dormência e me dirijo ao banheiro para lavar o rosto. O gato preto do Isaac estava frisado em mim, observando da porta, talvez aguardando que eu o alimentasse.

Nathanael: Ooh Isaac, você já deu de comer pro gato?

Isaac: Ah é, tava procurando ele.

Meu companheiro de equipe adora animais, acho que prefere a companhia deles aos membros da L.E., o que me assusta um pouco, considerando - ao exemplo de uma infestação – se ele prezar mais pela vida dos mascotes a dos seus companheiros. Segui caminho para o refeitório, com sorte já estão servindo o café da manhã. Alguém chega pelas minhas costas e agarra meu braço. Por pouco não saco meu revolver de bolso, me deparando com uma mulher loira, trajando um avental cientifico. Era Maria, médica e psicóloga da Legião, e líder do Centro Médico.

Maria: Precisamos conversar.

Nathanael: Sobre o que?

Maria: Aqui não. Estaremos mortos quando descobrirem.

E me arrasta pelo corredor.


Petshop Le Rêve D’un Chien - companheiro Nathanel – 16h27min – 22/06/2012 (BL)

Continuo minha busca aos fundos do estabelecimento, e encontro o único sinal da epidemia visível ali dentro: uma rachadura no topo de uma das paredes, onde um grupo de pombas tinha feito o ninho. Uso querosene e o isqueiro para incinerá-las. Afino os olhos, os ouvidos e a mente para procurar mais manifestações da praga. Tirando a morada dos pássaros, a petshop estava impecável. Sento no balcão de venda e tento usar o comunicador. Mais uma vez, em vão, apenas o mesmo chiado irritante de antes. Ouço os infectados gargarejando lá fora.

Nathanael: Situação chata, ehin...

Acendo um cigarro, inspiro uma boa quantidade de gases tóxicos para dentro do meu organismo, e começo a pensar sobre a minha vida. Meus objetivos, desejos e sonhos. Mas estes pensamentos não têm o mesmo gosto de antes; não sinto mais o deleite crocante mágico de poucos meses atrás. E é neste momento que percebo o quão miserável e sem sentido é minha situação.

Ando um pouco desanimado, e não sei se a depressão é decorrente do cansaço, ou pelo fato de terem me abandonado aqui para morrer. Creio que estes seres que se contorcem e gemem lá fora tem uma parcela de culpa. Não vou dizer que se tratam de demônios mitológicos imergidos do Inferno, pois os estaria exaltando. Há cerca de 3 meses, essas criaturas dominaram a Terra, dizimando nossa espécie e assumindo o controle da casa.

Pelo menos é o que eu acredito, pois quase nunca encontro uma pessoa normal quando ando na rua. Todos transformaram-se neles. Antes do fim do mundo, surgiram muitas teorias para explicar a origem dessas aberrações. Não tiveram tempo de realizar qualquer estudo – o mundo acabou muito rápido – então só temos especulações. A “pseudo-explicação” que pegou foi a da doença. Uma enfermidade inédita; sendo nunca antes visto nada igual na história humana. Uma doença que nos metamorfoseia em monstros. A grande epidemia, como a gripe aviária; não, melhor dizendo, a Pandemia da pior ameaça que nossa espécie já viu. O vírus, ou seja lá o que for, se prolifera por toda parte, qualquer meio ou situação imaginável. Pessoas, animais e mesmo os mais inertes agentes do ambiente podem ser infectados e se tornarem potenciais inimigos. Às vezes penso se os móveis não vão criar garras e dentes e tentar me devorar.

É realmente algo a se agradecer: estar vivo. Recordo-me quando tudo começou, eu era apenas uma presa com um revolver vagando sem rumo, esperando a munição acabar para virar petisco, quando fui salvo por uma equipe da Legião da Esperança - “L.E.” caso você não tenha saliva para falar tudo isso. Era um grupo de sobreviventes que admitia apenas membros (ou “companheiros”, como virou hábito chamar) que pudessem oferecer alguma habilidade no confronto contra os infectados. No caso, me acolheram por minha especialidade com armas de fogo.

O cara que teve essa idéia – da Legião - Coronel Henrique (não sei exatamente o porque do “coronel”, mas deve ter sido o cargo que exercia quando trabalhou nas Forças Armadas Brasileiras) queria montar – no menor espaço de tempo possível - um exército de soldados treinados para impedir a infestação, mas o plano ficou um pouco mais complicado depois que as centenas de milhares de devoradores de homens tomaram o planeta. Bom, de qualquer jeito eu tive sorte. Se estivesse fazendo companhia aos “enfermos” ou em algum grupo ineficiente, já estaria morto.

Mas isso não faz muita diferença, não agora que me abandonaram aqui para morrer. Se me lembro bem, todos os que tiveram o mesmo destino – se perder do resto da equipe – nunca mais voltaram. Resgates não são muito bem sucedidos por estas bandas. Sabe, é uma sensação bem amarga, não poder fazer muito pela própria vida. Acho que os malditos já sabem que tem comida aqui dentro; ou pelo menos tem uma hipótese, levando em conta que os disparos vieram logo ali da calçada. Não consigo descrever o calafrio nauseante que sinto, só de imaginar ser pego pelos demônios. Agonizar com os canibais experimentando da minha carne, e ainda com o sádico infortúnio de transformar-se num deles; perder o senso racional, as emoções, e ser movido apenas por impulsos básicos. Prefiro morrer a me sujeitar a isso, e por tal motivo sempre carrego - escondida em um compartimento oculto na manga do meu casaco - uma pequena pistola 9 mm Walther (arma curta padrão do exército português), para usar em mim mesmo quando sentir que tudo está acabado. Pode parecer grosseiro, mas é um pensamento comum nos dias de hoje.




Base da Legião da Esperança (L.E.) – Centro Médico (2º andar) – 05h35min - 22/06/2012 (BL)

Maria me trancou junto com ela no consultório, disse que tinha assuntos bem importantes para tratar.

Nathanael: O que você quer? Eu ando muito ocupado, sabia?

Maria: Quero que ponha isto na lista de mantimentos.

Ela me entrega um papel, rasgado e amassado, onde constava o item que tanto desejava.

Nathanael: De novo você me vem com essa história. A última vez que burlei a lista por sua causa quase dormi junto dos monstros naquele laboratório de homeopatia (isto é, manipulação de medicamentos). E você nem cumpriu sua promessa.

Maria: Se você tivesse feito sua parte do acordo eu teria cumprido.

Nathanael: Porque você precisa transgredir a lei e me levar junto? Porque simplesmente não diz pro Contador que realmente precisa desses produtos?

Maria: Não é tão simples assim, quando refere-se a algo pouco conhecido entrar na lista, qualquer item que não era usado corriqueiramente antes do Holocausto, precisa-se de um extenso relatório argumentando porque o produto é útil, e que bem fará aos membros da L.E.

Nathanael: Você não é médica? Pode contornar isso. Inventa alguma coisa usando um monte de palavras difíceis.

Maria: Mesmo assim. Coronel não elegeu Edgar como Contador à toa. Aquele nerd tem um certo entendimento das mais diversas áreas do conhecimento humano. Ele vai perceber.

Nathanael: Bom, eu não arrisco meu pescoço de novo por nada nesse mundo.

Maria: Horas, já se esqueceu do nosso acordo, Nathanael?

Maria tirou o avental, revelando roupas mais casuais, onde pude relembrar seus belos e aconchegantes dotes físicos. Ela seria a musa inspiradora de qualquer poeta – pelo menos qualquer poeta com a sanidade no lugar. Sua hipnotizante aura se aproximou de mim, lentamente, e aquele perfume viciante bateu contra minha face. Ela dava muita atenção a aparência, como se isso fizesse diferença no fim dos tempos – e sem ressaltar, como tratava-se de uma médica, o perfume poderia desencadear uma reação alérgica no paciente. Mas quem se importa, o mundo nunca iria acabar se mulheres como ela continuarem existindo. A tal altura, minhas pulsações dispararam com a proximidade, os lábios dela quase tocavam os meus; foi quando ela sussurrou:

Maria: Se você me trazer esse presentinho escrito aqui, eu me caso com você.


Petshop Le Rêve D’un Chien - companheiro Nathanel – 16h41min – 22/06/2012 (BL)

Algo bate com força contra a porta de entrada. Sinto um aperto na tomada de decisões. A poluição sonora que produzi ai em frente deve ter atraído dúzias deles. A vizinhança inteira está vindo me cumprimentar, e eu não tenho munição para tanto. Não importa quão boa sejam minhas técnicas de tiro, vou perder o jogo no próximo turno. Conformei-me com a morte na primeira semana de Holocausto; não sobreviveria se não o fizesse. Mesmo assim, as pulsações elétricas do meu cérebro me impeliam a depressão. Tento refrescar a mente. Não há saída pelos fundos, e mesmo se conseguir escapar desta sepultura, vou ter que cavar outra alguns quarteirões depois. Não saiu daqui vivo, a não ser que seja resgatado.

Porque eles não vêm logo? Será que eu não mereço nem ao menos uma tentativa? Bando de $¨%$*% ingratos; depois de tanto tempo servindo lealmente a L.E. simplesmente me jogam fora como lixo. Também desejo que todos eles morram! ... Não... Espere um pouco, eu era importante, tinha alguma utilidade; não me abandonariam assim. Talvez só não saibam minha localização. Uso o comunicador, deposito toda fé e esperança que encontro naquele pequeno aparelho, e mais uma vez o chiado de interferência vem me assombrar. Tecnologia é como o casamento, só está ao nosso lado na saúde. Essa circunstância me remota ao começo da infestação, quando telefones, celulares, t.v.s, Internet e qualquer ferramenta de transmissão entraram em curto. É quando me dou conta que o comunicador não vai funcionar, não a tempo.

Eles não vão me encontrar, e, conhecendo o animo daquela gente, já devem ter desistido da busca. Não há mais cartas para jogar; acabou para mim. Só restou dois caminhos: morrer nos dentes deles, ou pelas minhas próprias mãos. Pensando bem, se o caso é padecer de uma maneira ou de outra, todavia eu posso levar alguns deles comigo, finalizar quantos puder antes do meu coração parar de bater. Não, isso nunca funcionou. Remeto-me aos pobres coitados que fizeram tal heroísmo, e todos, logo após executar um ou dois infectados, eram cercados e devorados. Nem tiveram tempo de se suicidar. Eu prefiro tudo, menos virar um deles. Essa definitivamente não é uma opção.

Então o que faço? Saco a Walther e me mato agora mesmo? Realmente não há mais nada o que fazer?

Eu preciso mesmo morrer no final dessa história? Me volto para a única passagem para um lugar melhor: o comunicador. Eu queria tentar, só mais uma vez. Não deixaria este plano sem a certeza de ao menos ter tentado. O aparelho não funciona, de novo. Pelo menos desta vez não cultivei tanta esperança. Mas o que eu faço agora?

“Se mata...” diz uma voz na minha cabeça.

Hum, então é isso. Aconchego-me em um canto da loja e fico em silencio. Tento pensar em momentos felizes da minha vida, que valeram a pena. Quando me dou conta estava em mãos, já empunhado da manga do casaco, o fim de todas as minhas lamúrias. Minhas mãos tremiam, mas dava para manter a arma firme. Bom, lá vamos nós...


Base da Legião da Esperança (L.E.) – Dormitório masculino (2º andar) – 05h47min - 22/06/2012 (BL)
O refeitório estava fechado ainda, então voltei para a cama, para tentar dormir um pouco antes que o alarme soasse. Era muito tentador o acordo de Maria, mas eu tinha que refletir um pouco. No curto período de vida da L.E., ouve apenas um casamento, entre um velhinho que trabalhava na cozinha e uma senhora da enfermagem. Algumas semanas depois do sagrado matrimonio, eles morreram de mãos dadas em um ataque dos infectados. Talvez esse fosse um sinal.

Não conseguia pegar no sono em decorrência dos pensamentos, então me levantei e fiquei sentado na beira da cama. Foi quando senti uma presença maléfica no cômodo.

Coronel: Nathanael...

Nathanael: Ah... Olá Coronel, tudo bom?

Coronel: Por onde esteve? Estava te procurando para entregar a lista de mantimentos. Os membros da E.B.M. somem subitamente de vez em quando.

Nathanael: Nossa, a lista já está pronta? Que rapidez...

Coronel: É, Edgar é um membro muito prestativo. Vocês partem hoje as 16:00h. Quero que se preparem física e mentalmente.

Nathanael: Mas tipo, hoje não é feriado internacional? Dia da árvore ou coisa assim? Deveríamos ficar todos aqui para comemorar.

Que saudade dos feriados. A única função do calendário ultimamente foi distinguir as estações do ano; você sabe, as mudanças climáticas entre elas interferem na produção da colheita. Ah, e o lance do dia da árvore era brincadeira; nunca fui muito bom para guardar datas na memória. Só espero que o Coronel leve na esportiva.

Coronel: Nathanael...

O Coronel nunca demonstrava emoções, não no rosto, mas sua voz ficava mais gutural quando estava irritado.

Coronel: Permita-me explicar de um modo simples, que você entenda.

Ele se aproxima do aquário de Isaac e, com a agilidade de um felino, apanha um dos pobres peixes em um reflexo assustadoramente ágil.

Coronel: Está vendo este ser irracional cuja vida não tem nenhum grande sentido?

Nathanael: Estou... Ele é do Isaac.

Coronel: Ele representa você. Não, melhor dizendo, ele representa todos os membros da Legião da Esperança; com formas, cores e opiniões diferentes. O aquário representa este abrigo, onde todos nós chamamos de lar e nos sentimos confortáveis aqui dentro. Fizemos daqui nosso habitat natural.

Nathanael: Uhum... Continua, tá legal...

Coronel: Olhe para o peixe, ele está morrendo. Isto porque o tiraram de seu habitat natural. Se não sair logo desde novo e assustador terreno hostil, o qual teve o infortúnio de conhecer, ele certamente terá um triste fim.

Nathanael: É verdade, põe ele de volta.

Coronel: Mas se ele está assim apenas por permanecer fora do seu habitat, imagine só se deparar-se com um inimigo.

Foi quando percebi o gato preto do Isaac, arranhando as botas de couro do Coronel e suplicando o petisco.

Coronel: Tudo acabar tão rápido...

O Coronel, vagarosamente, deixa o peixe escorregar de sua mão. Ele cai em queda livre, até o gato o abocanha no ar e o ingerir antes de suas patas alcançarem o chão. Velhote miserável.

Coronel: Esta é a sua situação, Nathanael. Eu, e mais ninguém, escolhe quem fica aqui dentro, e quem fica lá fora. Então, é melhor me agradar e ir se preparar para a missão logo... Antes que eu mude de idéia quanto a deixar esta insolência passar...




Petshop Le Rêve D’un Chien - companheiro Nathanel – 16h49min – 22/06/2012 (BL)

Comunicador: Nathanael, você está na escuta?

A voz, incrivelmente familiar, chega glamorosamente aos meus ouvidos.

Comunicador: Nathanael, você está na escuta?

Jogo a 9 mm para longe e apanho o comunicador, eufórico.

Nathanael: Isaac!! Graças a Deus!!

Comunicador/Isaac: Nathanael...

Nathanael: Cara, você tem que me ajudar. Estou preso em uma petshop, e os $¨%&% cercaram o lugar. Estão tentando entrar...

Isaac: Porque você fugiu?

Nathanael: O que?

Isaac: Nós somos instruídos para manter o grupo sempre junto, mas durante o atentado você mandou alguns disparos contra o inimigo e depois fugiu...

Só faltava essa...

Nathanael: Ah, Isaac; não é o que você está pensando. Eu não fugi, aconteceu uma coisa. É meio complicado, depois eu explico. Pelo amor do menino Jesus, se você não vier agora, eu vou morrer... Você é meu amigo, não é?

Isaac: Hum...

Nathanael: Isaac?

Isaac: Qual é a sua localização?

Nathanael: Na petshop no começo da Rua dos Espíritos.

Isaac: Ah ta. Você não foi muito longe. Espere até os reforços chegarem aqui, e nós partiremos ao seu encontro.

Nathanael: Não! Não vai dar tempo, eu vou morrer bem antes de vocês chegarem. Eles sabem onde estou, não duro nem mais 10 minutos. Você tem que me ajudar agora. Você, o Donatello e o Thomas, com as habilidades de todos unidas me tirariam desse buraco em segundos.

Isaac: Mas também existe uma grande chance de todos nós morrermos tentando resgatar você...

Caramba, era só o que faltava: ter que suplicar pela minha vida.

Nathanael: Veja bem o que você está fazendo: descartando o melhor atirador da equipe. São meus tiros certeiros e sem desperdício que ficam entre nós e os monstros. Vocês não duram nem mais uma missão sem mim.

Isaac: O.K., vou discutir com a equipe as opções e chegaremos em um consenso.

Nathanael: Isaac... Nós somos amigos, lembra? Não pode jogar a decisão se eu vivo ou morro em uma discussão idiota... Porque... Nós somos amigos =D ...

Isaac: Você ficara sabendo a conclusão em breve. Cambio, desligo.

Nathanael: Seu desgraçado $$#@%!! Você não pode deixar tudo assim... Não pode me deixar aqui... Eu também sou da equipe... Vou voltar dos mortos atrás de você!! Seu desgraçado... Me escuta, por favor...

Mas apenas o chiado estava me escutando.


Cidade de Bela Linhagem (BL) – 16h10min - 22/06/2012

Depois daquela ameaça desnecessária por parte do Coronel, só me restou seguir viajem junto com Isaac, Donatello e Thomas, a procura dos malditos itens da lista. Mais uma missão da Equipe de Busca e Mantimentos. Talvez nós retornemos fartos, com um saco natalino cheio dos produtos tão cobiçados pela L.E.; talvez voltemos sem nada, e todos nos olhem com olho de maldição; talvez nunca mais voltemos. Qualquer coisa pode acontecer, o mistério paira, e é essa a graça do show – para o Coronel. Velhote miserável. Agora tínhamos que vasculhar as ruas, a procura dos pontos onde pudéssemos encontrar os tais mantimentos. Isaac, ao volante, sempre sabia a direção certa, de qualquer lugar que seja; Eu, claramente, cuidada dos freqüentes duelos contra as forças inimigas; Donatello reparava o veículo no caso de imprevistos; e Thomas, verificava a qualidade dos produtos antes da captação. Todos, obviamente, tinham noção de como usar uma arma.

Donatello: Vocês perceberam como a gente sempre fica infeliz quando sai nessas missões?


Rua Arco-Íris – companheiros Nathanael, Isaac, Donatello e Thomas – 16h12min - 22/06/2012 (BL)

Estava tudo indo bem - apenas passeávamos de olhos abertos – quando algo invisível se choca contra o jipe. A direção falha imediatamente; se não fossem as manobras cinematográficas de Isaac, teríamos condecorado um muro de concreto com as nossas vidas.

Thomas: Pelo amor de Deus, o que houve Isaac?

Isaac: Atiraram contra nós.

Donatello: E está esperando o que para nos tirar daqui?

Isaac: A bala acertou em cheiro no motor. O desgraçado mira muito bem.

Eu já tinha uma idéia do que estávamos enfrentando.

Nathanael: Ele está usando um rifle de longa distância. Deve estar entrincheirado em algum dos edifícios a nossa frente.

Ele com certeza estava lá, e se nós não fizemos nada, a brincadeira de tiro-ao-alvo iria começar. Reparei na névoa: a densidade estava aumentando rapidamente. Talvez tenhamos ganhado uma vantagem. Sai do veículo com cautela, quanto um outro projétil atravessou a porta-escudo, por pouco não levando meu intestino junto. Dessa vez consegui pegar seu ângulo de visão, e logo o encontrei. Estava em uma janela de apartamento no 5º andar de um prédio, não muito longe. Meu Mosin Nagant poderia alcançá-lo. Saltei para trás do veículo, por pouco não perdendo meus miolos em outro disparo. A mira dele estava lenta por causa da névoa, mas acho que não podia aproveitar dessa vantagem por muito tempo, a morte passava raspando. Gritei para que todos dentro do jipe se abaixassem e forjassem alguma proteção provisória. Seguiu uma série de disparos, mais a blindagem do teto do jipe resistiu. Agachei e comecei a me arrastar por baixo do veículo, sobre uma interrupta linha de fogo, atravessei todo o escapamento e cheguei à frente.

Mirei o alvo. Ângulo não era dos melhores, mas dava para o gasto. A névoa abaixou um pouco a intensidade, como uma interferência divina para eu finalizar meu oponente. O Nagant não tinha mira telescópica, era apenas eu e as limitações do sentido da visão humana. Tinha apenas uma chance: minha técnica secreta. Teria que te matar se dizesse onde aprendi. Tratava-se de uma arte milenar, utilizada para atingir elementos fora de foco – isto é, providencia verdadeiros milagres no ato de mirar e atirar. Teria que me concentrar, sentir o alvo. Segundo os ancestrais mestres que me ensinaram tal habilidade, todos os seres-vivos estão ligados por um fluxo de energia, conectados pelos longínquos campos do subconsciente. Se conseguirmos aprimorar essa parte do cérebro a um bom nível, poderemos nos “conectar” com outras formas de vida a distância que for, não fazendo diferença milhas ou centímetros. É a habilidade de “uni-mente”. Pronto, já confessei muito, é hora de agir. Atiro; a bala corta a névoa e, como um milagre, acerta o alvo na mosca.

Ou quase. Consegui apenas destruir a visão telescópica do rifle dele, mas o desgraçado em questão fugiu. Mas eu sei muito bem de quem se trata. Um homem solitário, com um perturbador desvio de personalidade; Santacruz, um maldito serial killer que compete com a praga para ver quem tem mais baixas na ficha criminal. Não sei exatamente o que acontece com este psicopata sem amor pelo próximo, apenas que ele considera os outros humanos uma ameaça tão grande quando os próprios infectados. Quando se depara com outro sobrevivente, sem mais nem menos, tenta matá-lo. Eu já parei de tentar compreendê-lo, e a única coisa que me vem à cabeça quando o encontro é tentar tirar essa ameaça das ruas.

Nathanael: Bom, vamos terminar essa missão.

Foi quando aquela brisa macabra veio do além para açoitar minha alma. Senti uma nova espécie de vertigem, uma mudança brusca na velocidade em que o sangue corria no meu corpo; drásticas alterações em toda minha fisiologia. Virei-me; a figura sombria, aterrorizantemente familiar, perambulava no final da rua. Não era nada mais, nada menos que o cão com cabeça de ferro que abismava meus sonhos, uma aparição física do pesadelo, andando a luz do dia. Por pouco não tive uma parada cardíaca.

Nathanael: Mas que #$%#$ é você? ...

Como no sonho, ele veio até mim, naquele trote torto e mal calculado, e te digo, o animal era muito mais feio quando iluminado pelo Sol. Estava paralisado, minhas pernas não se moviam, como se alguns duendes travessos tivessem injetado um anestésico em mim sem eu perceber. Consegui empunhar o rifle: talvez se conseguir matar esse desgraçado aqui e agora eu consiga sonhar com coisas mais legais, tipo fadas e unicórnios. O cachorro interpretou o sonho perfeitamente como um ator de teatro: ele parou alguns centímetros de mim e latiu. Depois deu meia-volta e foi embora. Aproveitei que o ambiente estava melhor iluminado do que meu sonho, e o segui. Acho que alguém me chamou ao fundo, o Isaac ou o Donatello, mas continuei em frente; parecia algum tipo de transe, tudo era tão surreal. Segui o cabeça de metal até a avenida Jardim Encantado, quando ele desapareceu na névoa.






Petshop Le Rêve D’un Chien - companheiro Nathanel – 16h55min – 22/06/2012 (BL)

Agora é só rezar que Isaac venha logo. Ele deve gostar um pouco de mim, já passamos um bom tempo trocando ossos do ofício e experiências de vida em conversas fúteis pelas infinitas horas que duram as missões. É, ele vai vir. Tem que vir... Deus queira que venha... Mal levanto do canto onde deveria ter dado o último suspiro, o comunicador voltar a chamar.

Coronel: Nathanael, você está na escuta?

O Coronel? O que ele quer? Curtir os últimos momentos antes da minha morte?

Nathanael: Coronel, pelo amor de Deus, você tem que ajudar... Acabei de falar com o Isaac e ele estava um pouco relutante em vir me salvar. O senhor e o seu amor pelas pessoas são a minha única esperança...

Coronel: Bom, só queria te dizer que, em situação crítica ou não, você ainda tem um dever para cumprir para com a L.E. ...

Ele só podia estar brincando.

Nathanael: Ah, poderia ser mais especifico senhor?

Coronel: Estou dizendo que encontrar os mantimentos necessários ainda é a prioridade, muito maior que a sua própria segurança.

Nathanel: Mais, sabe Coronel... Tipo, eu tenho que estar no mínimo vivo para conseguir os mantimentos, e depois entregá-los devidamente na base.

Coronel: Mesmo cercado pelo inimigo e sem ajuda externa, todos vocês foram instruídos de memorizar cada item que consta na lista; então, você ainda tem a capacidade de procurá-los e possuí-los.

Nathanael: Eu estou em uma petshop, senhor...

Coronel: Cumpra com o seu dever, não admito falhas. Cambio, desligo.

Velhote miserável. Isaac tinha razão, ele tem alguma coisa contra mim. Eu quero que o cretino se dane, vou ficar bem aqui, fantasiando. “Peixes no aquário”, a pior besteira que já ouvi na vida, nem ao menos filosofar aquele imbecil sabe.


Base da Legião da Esperança (L.E.) – Centro de Comando Exterior (3º andar) – 17h03min - 22/06/2012 (BL)

Coronel: Equipe de resgate temporária, qual é a sua localização? Cambio.

Comunicador: Estamos próximos do centro da cidade; a Equipe de Busca e Mantimentos será alcançada em breve. Cambio.

Coronel: Excelente. Qual é o nível de infestação? Cambio.

Comunicador: Até agora nenhum infectado. Cambio.

Coronel: Hum... Apenas contatei para alertar sobre uma mudança brusca no clima.

Comunicador: Senhor?

Coronel: Aquele meteorologista que ingressou há pouco tempo descobriu uma anomalia atmosférica. Eu não compreendo esta ciência por completo, mas segundo o especialista trata-se de uma tempestade semelhante a que ocorreu na véspera do fim do mundo. Recorda-se?

Comunicador: Sim, senhor.

Coronel: Então compreende a ameaça. Quero que agilize a operação.

Comunicador: Entendido, senhor.

Coronel: E não se esqueça, ao entrar em contato com a Equipe de Busca e Mantimento, descubra a localização do membro Nathanael Augusto e também o resgate. É uma prioridade. Cambio, desligo.


Petshop Le Rêve D’un Chien - companheiro Nathanel – 17h09min – 22/06/2012 (BL)

Tinha ficado tão feliz com o comunicador voltar a funcionar, mas ele só tem me trazido má sorte e stress. Tenho vontade de quebrá-lo agora.

Comunicador: Hey Nathanael, responda!

Não tinha como confundir aquela voz feminina.

Nathanael: Maria? Você está na ponte de comando?

Maria: Não, isso aqui é uma radio pirata que eu construí junto com uns amigos, mas não conta pra ninguém, tá?

Nathanael: Tá.

Maria: Conseguiu pegar a nossa parte do acordo?

Nathanael: Aff... Fomos atacados, me separei do grupo e agora estou preso em uma petshop com dezenas deles me esperando lá fora. Como você quer que eu encontre qualquer coisa nessa situação?

Maria: Oh, querido Nathanael, assim não vai ter como eu cumprir a minha parte do acordo. E olha que o único motivo pelo qual incisto tanto nisso é porque quero viver feliz para sempre ao seu lado.

Nathanael: Sério?

Maria: Sério! Você é meu príncipe encantado. Agora porque não sai desse ninho de ratos e vai procurar o que sua noiva tanto quer, ehin?

Que sensação de sufocamento. Aquela petshop miserável era tão solitária.

Nathanael: Ah, Maria, posso te perguntar uma coisa?

Maria: Claro, amor. Tudo o que você quiser.

Nathanael: Como você está se vestindo?

Maria: O que??

Nathanael: Como você está se vestindo? Poderia descrever para mim? ...

...

Maria: Vai para o Inferno, seu cretino!! Agora não é hora para isso... Traga a porcaria do produto ou nada feito... Cambio, desligo.

Mas que droga, está tudo dando errado. Agora sim eu vou quebrar o comunicador.

Comunicador: Abaixe-se...

Nathanael: Ahm?

A voz era familiar, mas não era Maria.

Comunicador: Granada... Abaixe-se...

Senti outra coisa pairando no ar. De repente, tudo veio ao chão. Uma explosão, bem em frente a petshop, fez a loja aos pedaços. Estilhaços dos vidros, das paredes e da mercadoria voaram como um ataque de artilharia. O estrondo e o impacto me atingiram em uma sincronia tão perfeita, que imaginei estar morto. Mas, graças ao meu tato para com situações críticas, me joguei atrás do balcão antes da catástrofe.

Nathanael: Jesus...

Observei a grande cratera que ficou no lugar de onde era a antiga porta de entrada. Na rua também predominava o caos; a fumaça substituiu a névoa e havia corpos de infectados destroçados para todos os lados.

Isaac: Nathanael, você está vivo?

Ao mesmo tempo em que ouvi a pergunta, esqueci a dor e a zonzeira, e gritei.

Nathanael: Isaac!! Eu sabia que viria!! Não perdi a fé por um segundo...

Isaac: Temos que ir. Uma equipe reforço chegara daqui a pouco na rua Arco-Íris.

Nathanael: Ow, me ajuda aqui... Acho que parti a coluna...

O que aquele cachorro do meu sonho representa? Como ele se materializou em carne e osso? Cara, minha cabeça não para de zunir, como se eu estivesse usando um chapéu de colméia, e todas as abelhas inquilinas saíssem para lutar com seus ferrões e sua coragem suicida, prontas para morrer em nome da rainha. Não consigo pensar direito, mas acho que o Coronel está tramando alguma coisa... E o que Maria está planejando fazer com aquele pedido bizarro? Alguma experiência? Quem disse “se mata” naquele meu momento de desespero? Apesar de Isaac estar aqui, sinto que algo muito ruim se aproxima...




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Todas as imagens foram gentilmente roubadas do belíssimo acervo de Ana Cristina, minha querida amiga escritora, tradutora e vampira. Espero que não se importe, e obrigado Ana!

Por favor, não me venham com aquela velha história de que as imagens “não estão no clima”, pois as pus no texto por luxo e também como marcação, para maior conforto no momento de ler este texto relativamente longo. E também é uma blasfêmia reclamar de imagens de tamanho bom gosto.

Caio Tadeu de Moraes

Capítulo 1: "Germes da Sobrevivência"



Av. Jardim Encantado - 16:12 - 22/06/2012 (BL)


A cabeça dele estava na minha mira. O indicador acariciava o gatilho, e meus instintos sabiam muito bem o que tinha que ser feito. Parado a alguns metros de mim, talvez certificando-se se o companheiro do outro lado da rua (eu) fazia mesmo parte da sua prole; isto é, se era degustável ou não. Quando certificou-se que me foi dado a auto-consciência, iniciou um leve caminhar na minha direção. Tratava-se de um velho senhor de cabelos grisalhos, camiseta xadrez azul e branca, e calça de moletom. Seu corpo fora bem conservado, tinha uma ótima aparência; se não fosse o tom de pele mórbido, os olhos esbranquiçados pela catarata e a boca espumando sangue e restos humanos, nem o veria como uma ameaça.

Ele estava na mira. Aquilo só podia terminar de um modo; todas os ingredientes da circunstância unidos poeticamente para alcançar apenas um resultado; um ato encenado e minuciosamente reeleito; uma ação com somente uma conseqüência possível; um efeito pré-determinado. Você entendeu, mas eu adoro esse jogo de palavras. Apesar da ocasião ser perfeita - a mira e tudo mais - meu lado racional hesitou. Ah, meu lado racional... Não sei se poderia odiar-lo tanto quanto o amo.

Empunhava um rifle M-44 Mosin Nagant, de produção russa, e tinha completa ciência do risco: o disparo atrairia mais deles. Muito mais deles. Os malditos conseguem infestar um recinto inteiro em segundos, como uma praga de gafanhotos; digo por experiência própria. Meu rifle, tão tentador, era inútil se eu não tivesse um bem disposto veículo de escape para me auxiliar. Como eu queria que o desgraçado do Isaac estivesse aqui; desejaria ao gênio da lâmpada se pudesse.

Para falar a verdade, eu estava um tanto desnorteado, melhor dizendo, em estado de pânico, pois não acreditava que meu leal meio de transporte me abandonou naquele festival macabro com chance nula de sobrevivência. O comunicador parou de funcionar desde que me perdi, e a sensação de estar sozinho me esganava vivo. Tentei contra-balancear o medo, certamente morreria se não o fizesse. O alvo se aproximou, esticando os braços para me alcançar, com sua vaga noção de distância. Analisei a situação o máximo que pude. Se eu fugisse, ele viria atrás e seus grunhidos poderiam atiçar os outros. Isso seria ruim.

O atingi com uma coronhada no rosto, afundando a coronha da arma na sua face e esbugalhando seus olhos - não podia arriscar usar o poder de fogo do rifle e denunciar minha localização. Segui pela avenida em passadas ágeis, mantendo extrema fixação com os arredores. Ficar andando á céu aberto é um chamariz para os miseráveis virem ao banquete. Poderiam vir de qualquer lugar: casas, carros, pilhas de escombros, bueiros de esgoto, debaixo da terra. Até do céu eles podem cair - como algum tipo de prova visual comprovando a teoria da abiogênese, cujo os evolucionistas deixaram passar.

Estava numa posição desconfortável na cadeia alimentar e precisava criticamente encontrar abrigo; uma proteção provisória até conseguir contato com o centro de comando. Se me lembro bem, tem uma casa-n'-árvore virando na próxima a esquerda. Casas-n'-árvore são refúgios muito úteis contra este tipo particular de inimigo, e digo de experiência própria. Dobro a esquina e tenho outra surpresa: um individuo de jaqueta jeans e cabelo raspado, atirado ao chão, se alimentava de uma carcaça humana. Dois grandes abutres lutavam pelas sobras, jorradas ao seus bicos pelo agressivo deleite canibal da criatura. Quando me viu, o filho da mãe parou o que estava fazendo e saltou pra cima de mim. O susto foi tanto que mal tive tempo de raciocinar: empunhei a arma e atirei. A cabeça do ser se desintegrou. Fragmentos de crânio, cérebro, memória e alma fruíram impetuosamente nos mais diversos ângulos. Lembrei-me de como este rifle podia fazer um estrago e tanto; o que aumentou um pouco minha confiança.


Rua dos Espíritos - 16:17

Mas não tinha tempo de me vangloriar: aquilo ali enfartaria de malditos, procurando com curiosidade a origem do som. Logo deparei-me com a primeira leva: 4 amaldiçoados, imergidos de alguma fossa fora de visão, corriam num trote desajeitado ao meu encontro. Acredito agora não ter outro opção a não ser limpar o caminho e seguir adiante. Encontravam-se a certa distância, e usufrui-me da vantagem para me posicionar e mirar. Puxo a alavanca da arma, ejetando o cartucho utilizado, e a retorno, dando lugar a uma nova bala. "O ciclo da morte". O primeiro da lista de execução usava boné e camiseta de torcidas oficiais, a qual não reconheci por não ser muito fã de futebol. Atingi certeiramente seu peito e as costelas saltaram para fora, enfeitando o ar com uma cortina mista de sangue e órgãos vitais. Foi belo;queria ter batido uma foto.

Os outros eram um mendigo trajando farrapos e um homem de boina e casaco pretos, carregando um quadro de pintura abstrata consigo. Acertei a perna do mendigo, precisamente na junta, decepando-a; e as leis da física terminaram o serviço: ao capotar o infeliz caiu de cara, rachando a caixa craniana contra o asfalto. O maluco de preto abati com outro "headshot" - só para testar se eu não perderá a perícia com armas - lançando a boina para fora e manchando sua roupa com os próprios miolos. O último miserável, para meu espanto, vestia-se como cosplay de Alucard, do anime Hellsing - perfeito, com todos os detalhes do original: deste os pentagramas desenhados nas luvas até os óculos característicos. Posso jurar que ouvi a música-tema ao fundo. O projétil atravessou sua cintura, o cortando ao meio e banhando o pavimento da rua com suas vísceras.

Mal pude deleitar a vitória: um aglomerado de malditos, de 20 a 30 aproximadamente, se empalheravam ao final da Rua dos Espíritos. Não iria demorar para me alcançarem; tinha que improvisar um esconderijo, rápido. Por impulso, arrombei a porta de vidro da petshop "Le Rêve D'un Chien" - logo ao meu lado - e entrei. Não sei se foi a melhor escolha, mas, como disse, foi por impulso. Quebrei a maçaneta (nunca se sabe, né) e bloqueei a porta com uma estante. Recarreguei o rifle, esvaindo meu patético estoque de munição, e comecei a observar o novo cenário. Tudo estava no lugar: rações e acessórios para mascotes ajeitados com muito amor e carinho nas prateleiras. Nem parece que o pleno Apocalipse passou por aqui. Só espero que não seja uma daquelas petshops com filhotes à venda.

Vasculhei a loja em busca de mantimentos. Era estranho demais tudo estar tão organizado, chegava a ser bizarro; como se eu tivesse voltado no tempo, antes desse pesadelo foto-realista começar. O ponto mais enlouquecedor era o silêncio, como o sossego dos predadores antes da emboscada. Aquele lugar fora simplesmente intocado, intacto a ação do exterior. Definitivamente um milagre. Mesmo assim, não havia nada de muito útil no estoque: apenas alimento para as criações de gado e antibióticos. Alguém - cuidadoso, aparentemente - tinha se servido antes de mim.

Continuo minha busca aos fundos do estabelecimento, e encontro o único sinal da epidemia visível ali dentro: uma rachadura no topo de uma das paredes, onde um grupo de pombas tinha feito o ninho. Uso querosene e o isqueiro para incinera-las. Afino os olhos, os ouvidos e a mente para procurar mais manifestações da praga. Tirando a morada dos pássaros, a petshop estava impecável. Sento no balcão de venda e tento usar o comunicador. Mais uma vez, em vão, apenas o mesmo chiado irritante de antes. Ouço os infectados gargarejando lá fora.


Rua Arco-Íris - 16:31

Pouco mais de três quarteirões da petshop, outro fator distraia meus famintos perseguidores. Creio ser este contra-tempo que me garantiu mais alguns minutos de vida. O veículo inerte no meio do caminho - um jipe M151, usado pelo exército brasileiro - não estava vazio. 2 passageiros, armados com rifles de assalto, compartilhavam a vigia da área; um abeirando a direita, e o outro, a esquerda do transporte. Os canos das armas apoiados nas janelas, posicionados cada um em pontos distintos: no banco do motorista (Isaac) e no assento do passageiro (Thomas) respectivamente. Estavam atentos, mas tudo o que enxergavam era a imensidão branca da névoa.

Thomas: Nós vamos morrer... Não há como escapar disso; ninguém conseguiu... Vamos morrer! [sussurrou]

Isaac: Realmente Thomas, nós vamos morrer. Mas, por favor, fique calmo.

Thomas: Como você quer que eu fique calmo? Você sabe o que acontece quando nos pegam, não sabe?

Donatello: Vocês querem calar a boca! Estou tentando consertar nosso única chance de sair daqui com vida... [gritou debaixo do jipe]

Ah, sim. O Donatello também estava lá.

Thomas: Não grite! Eles são atraidos pelo som, lembra?

Donatello: Faça o seu trabalho, e eu faço o meu...

Isaac: Muito estranho não acham?

Thomas: O que?

Isaac: Quando o carro estava funcionando, reparei dezenas de monstros vagando pelas ruas, bem perto daqui. Mas faz uma meia-hora que estamos paralisados no mesmo lugar, e nenhum deles apareceu.

Donatello: Graças a Deus, né?

Thomas: É, estamos vivos por causa disso.

Isaac: Mas vejam bem; todos estavam seguindo na direção mesma, o centro da cidade. Como uma migração, ou algo assim. Tem algo diferente acontecendo.

Donatello: Coincidência...

Isaac: Não, tem alguma coisa errada. Talvez eles estejam planejando alguma coisa.

Thomas: Vira esse mal presságio pra lá.

Donatello: O Isaac é louco! Eu digo para todo mundo que ele é uma ameaça e ninguém me escuta.

Thomas: Ameaça é você ficar gritando ai... Acho que eu estaria melhor por conta própria lá fora.

Donatello: Pode ir. De você eu não faço questão.

Isaac: Não vamos perder a cabeça senhores; é a última coisa que a situação exige. Pois bem, alguém sabe o que aconteceu com o quarto passageiro, o Nathanael?

Thomas: Ele fugiu, logo após o ataque. No momento em que o jipe parou, o rapaz abriu a porta e saiu correndo.

Isaac: Sim, eu vi. Mas queria saber o que aconteceu com ele. Nas dúzias de missões que tivemos antes, ele demonstrou muito mais coragem.

Donatello: É um covarde. Sempre foi, só você não percebeu...

Inacreditável: não calam a boca e ainda estão vivos. Agora sim eu acredito em milagres.

Thomas: Porque não tenta usar o comunicador de novo? Talvez a interferência tenha passado.

Isaac: Bom, não custa tentar.

Isaac liga o aparelho e, como um sopro de esperança de última hora, a frequência se sintoniza e o eletrodoméstico volta a ter serventia. Desgraçados de sorte.

Isaac: Está funcionando!

Thomas: Aleluia!

Thomas ri de felicidade.

Donatello: Está esperando o que? Contate a base...

Comunicador: Centro de Comando Exterior da L.E. falando, cambio.

Isaac: Aqui é a Equipe de Busca e Mantimentos falando, cambio.


Base da Legião da Esperança (L.E.) - 16:45

Centro de Comando: Equipe de Busca e Mantimentos, qual é a sua situação, cambio.

Uma figura sombria entra na sala, caminhando com autoridade, logo as costas do jovem na ponte de comando que se comunicava pelo headset.

Coronel: Me dê licença Francis, tenho alguns assuntos a tratar com a equipe de mantimentos.

Centro de Comando/Francis: Claro Coronel, a suas ordens...


Rua Arco-Íris - 16:46

Isaac: Situação crítica. O veículo foi danificado e estamos presos em território hostil. Um companheiro está desaparecido.

Coronel: Isaac...

Isaac: Ah, Coronel?

Coronel: Qual dos companheiros está desaparecido?

Isaac: Nathanael Augusto, senhor.

Coronel: Hum... Agora que a comunicação foi restabelecida, tente fazer contato com o desaparecido novamente. Bons atiradores como ele são difíceis de encontrar.

Isaac: Entendido.

Coronel: Permaneçam onde estão, enviarei reforços e um reboque. Tentem se manter vivos, pois irei arriscar mais vidas para salvar as suas. Não desperdicem meu tempo.

Isaac: Entendido. Obrigado, senhor.

Coronel: E localize Nathanael. Cambio, desligo.

O comunicador volta ao silêncio.

Donatello: "Não desperdicem meu tempo". Aquele velhote mal-agradecido; ele tem a obrigação de salvar a gente e ainda reclama por isso.

Isaac: Pelo menos ele vai mandar ajuda dessa vez.

Thomas: O Coronel parecia interessando em saber se o Nathanael estava morto ou não. Engraçado, não acham?

Isaac: Bom, de qualquer jeito vamos ter que contata-lo; foi uma ordem.

Donatello: Aproveita e chama ele de covarde.

Isaac liga mais uma vez o comunicador e chama pelo tal Nathanael.

Isaac: Nathanael, você está na escuta?

Aguarda alguns estantes, mas ninguém responde.

Isaac: Nathanael, você está na escuta?

Nathanael: Isaac!! Graças a Deus!!

Isaac: Nathanael...

Nathanael: Cara, você tem que me ajudar. Estou preso em uma petshop, e os $¨%&% cercaram o lugar. Estão tentando entrar...

Isaac: Porque você fugiu?

Nathanael: O que?

Isaac: Nós somos instruídos para manter o grupo sempre junto, mas durante o atentado você mandou alguns disparos contra o inimigo e depois fugiu...

Nathanael: Ah, Isaac; não é o que você está pensando. Eu não fugi, aconteceu uma coisa. É meio complicado, depois eu explico. Pelo amor do menino Jesus, se você não vier agora, eu vou morrer... Você é meu amigo, não é?


Base da Legião da Esperança (L.E.) - 16:54

Francis: Senhor, acredita mesmo que no final essa operação terá sucesso?

Coronel: Cale a boca, Francis. Cuide do seu departamento e está muito bom. E me avise se contatarem a ponte novamente.

Francis: Senhor, sim senhor!

O Coronel vira-se, deparando-se com uma mulher apoiada na parede, ao lado da porta, fazendo pose e o encarando.

Coronel: O que você está fazendo aqui?

Maria: Coronel Henrique...

Coronel: Você deveria estar no Centro Médico agora...

Maria: Só queria te perguntar uma coisa.

Coronel: Fale...

Maria: Porque esse interesse repentino em Nathanael? Pelo que sei, nem as habilidades com armas do rapaz ajudou muito para você gostar dele...

Coronel: Veja só! As paredes tem ouvidos agora!

Maria: ...

Coronel: Pois bem; vou responder só porque você é minha querida Maria, membro leal da Legião da Esperança. Preste atenção...

Maria: Estou ouvindo.

Coronel: Nathanael, e suas incríveis perícia em combate, vão ser a peça-chave para uma nova campanha, idealizada por mim. Tal ato revigorara toda a Legião, e certamente ira reverter o jogo da sobrevivência para sempre. E a vitória, finalmente, será da humanidade!!


O Coronel enlouqueceu, e os demônios caminham lá fora. Cama de gato intrincada.